Uma avó com as marcas dos anos vividos em seu rosto. Uma mãe que amamenta o filho como pode e outra que carrega o bebê a tiracolo em meio ao dia de labuta. No fundo, galhos e raízes de árvores que contam uma história sobre o ciclo perene de famílias lideradas por mulheres, nas quais filhas encaram a maturidade de virar mães, que depois tornam-se avós.
Esta é a imagem que estampará os muros de um conjunto habitacional da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) no Itaim Paulista, zona leste de São Paulo.
“Enraizadas apresenta a árvore em suas raízes, seu fruto e sua flor. Com uma poética que sugere não somente a beleza, mas também a dureza e secura de muitas partes desse processo. O ciclo. O eterno retorno. Cada criança que nasce é um ancestral que retorna. Estou aqui porque já estive em todas as partes”, detalha a artista da obra, Mimura Rodriguez.
O grafite começará a ser pintado na próxima segunda-feira (4) e deve levar cerca de 10 dias para ser finalizado. A pintura foi selecionada pelo projeto Museu de Arte de Rua (MAR), da Secretaria Municipal de Cultura, da Prefeitura de São Paulo. Com nota 106,3, a obra “Enraizadas” foi classificada em 7° lugar, na categoria “Altura”, com o tema “Maturidade”.
A obra ocupará uma área de 236,25m², dos muros do Bloco 04-B do Condomínio Vitória, na Rua Manuel Rodrigues Santiago, 88D. Mimura explica que o local escolhido para a pintura também se conecta diretamente com a proposta poética da obra, já que os paredões do conjunto habitacional abrigam histórias duras de diversas mulheres periféricas que ali vivem.
Fruto de um relato pessoal, o desenho se conecta ainda com a história de sua criadora. Atuante no mundo das artes desde 2012, Mimura se tornou mãe em 2020, aos 31 anos e em meio à pandemia. Ao viver o maternar de sua filha e se conectar com a avó, Mimura passou a ter as “mulheres” como o foco de suas obras – sua avó está morando com sua mãe.
“Tenho aprendido muito sobre a potência das mulheres e como sustentamos nossa comunidade em diversos aspectos, mesmo que estes não sejam tão valorizados quanto deveriam. Tento trazer a força da ancestralidade, essa que não é apenas sobre parentes que viveram há muito tempo, mas também sobre os que estão aqui conosco”, comenta a grafiteira, explicando que, em sua arte, é a esses elementos que busca dar visão e voz.
A artista
Mestiça – filha de mãe japonesa e pai uruguaio -, Mimura é periférica, nascida no bairro do Jabaquara, zona sul de São Paulo. Aos 34 anos, mora na cidade de Guarulhos, na Região Metropolitana. Além de ter a força das mulheres de sua família como inspiração, ela também enfatiza que o ambiente em que cresceu é sua raiz e seu norte em tudo o que faz na arte.
Além de grafiteira, Mimura é graduada em cenografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Migrou do teatro para outras frentes das artes em 2017, quando começou a tatuar. Durante a pandemia, retomou trabalhos de xilogravura e tapeçaria. No ano passado, foi convidada a produzir murais com temática especial para o dia das mães e logo se apaixonou por pintar em escala cada vez maior e levar sua percepção de mundo para a rua.
“De mãos paradas minha cabeça fica cheia, preciso estar constantemente movimentando e mudando o que vejo, sinto e percebo do mundo de lugar. Seja com tinta, tecido, linhas. O importante é estar em movimento”, afirma a grafiteira que ainda compõe o rol de artistas latinos da agência “Cor Preta”, que possui uma galeria de arte online hospedada em Berlim.
Mimura já realizou cerca de 50 pinturas na carreira. Como grafiteira, tem admiração pelos artistas de rua que abriram caminho para que a arte urbana passasse a ser considerada uma profissão real. Além do prazer de pintar, a rua trouxe à artista a vontade de “criar grande pra geral ver”, além da “satisfação imensa” em saber que é algo público e não privado.
Temas relacionados à ancestralidade, vivenciada através da maternidade e de sua espiritualidade, compõem a poética de Mimura, que, além da capital paulista, também realizou pinturas em muros no Rio de Janeiro, Minas Gerais, Jacareí, Guarulhos e Cubatão, e tem trabalhos de xilogravura e tapeçaria expostos em São Paulo e em Berlim, na Alemanha.
Entre suas obras, destacam-se ilustrações para a coleção de sandálias Ipanema (2021); grafite da obra “Comunidade” em um mural de 450m² no CEU Butantã (2022); pinturas no Minhocão e murais em diversas regiões de São Paulo, como na Baixada do Glicério, na Vila Ré, Jabaquara e na Avenida Cruzeiro do Sul. Mimura também foi assistente de pintura em trabalhos para marcas como Adidas e Ballentines (2021), já participou de exposições, foi palestrante e, junto ao SESC de Osasco, realizou oficinas de xilogravura e lambe-lambe.
MAR
“Enraizadas”, o mais novo trabalho de Mimura, faz parte do Museu de Arte de Rua (MAR), da Prefeitura de São Paulo. O programa visa aprimorar a vocação da cidade para a produção de arte urbana e ampliar seu impacto positivo na cultura e identidade do município.
As obras em grafite, estêncil e fotografia são de diversos artistas. Em grandes dimensões, as artes possibilitadas pelo MAR entregam à cidade painéis em prédios e muros espalhados pelas cinco macrorregiões da capital, como um verdadeiro museu a céu aberto.
O projeto incentiva o desenvolvimento da arte urbana pelas ruas e avenidas da maior metrópole da América Latina. Este é o segundo ano que Mimura é classificada pelo projeto.
Nesta edição de 2023, os projetos de intervenções de arte urbana do programa são contemplados em nove temas diferentes – Infância e Juventude, LGBTQIAP+, Maturidade, Meio Ambiente, Mulheres, Negritude, Povos Indígenas, Trabalhadores e Tema Livre.
Os muros dos prédios CDHU foram mapeados pelo projeto “Na Raça”, coletivo que obteve as autorizações e viabilizou o trabalho de diferentes artistas, como de Mimura. Desde 2019, o projeto catalogou diversos espaços disponíveis em regiões periféricas e, neste ano, ofereceu alguns desses pontos para que os artistas propusessem os trabalhos junto ao MAR.