Mesmo com medo, eles não podem parar

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Da Redação

Embora as escolas e universidades estejam fechadas, os profissionais de empresas públicas e privadas exerçam suas atividades de casa e os governadores e prefeitos peçam que todos se isolem para evitar a contaminação pelo novo coronavírus, milhares de trabalhadores têm de sair às ruas. São aqueles profissionais que atuam nos “serviços essenciais”, de acordo com a medida provisória nº 926/20.

Além de serviços médicos e hospitalares, segurança pública e defesa, estão também na lista atividades de abastecimento, telecomunicações, tratamento de esgoto e lixo, funerárias, jornalísticas, de distribuição de água, energia elétrica, entre tantas outras, todas fundamentais neste momento. São policiais, profissionais de saúde, garis e sepultadores que têm de ir a seus locais de trabalho para que os outros fiquem em casa, cumprindo as determinações de isolamento social. Trabalham por eles próprios e, um pouco, pelos outros.

A crise do novo coronavírus destacou com caneta marca-texto a importância dessas profissões e desses profissionais. É possível imaginar um bombeiro em regime de trabalho home office? Ou um médico, de qualquer especialidade, que não tenha tido sua rotina afetada pela pandemia? O jornal O Estado de S. Paulo ouviu vários profissionais sobre as novas realidades pessoais deles e funções inauguradas pela doença.

Nos relatos de angústia, tensão e também de otimismo, duas palavras se repetem, como se unissem um fio imaginário nesse labirinto criado pela pandemia: o medo e a missão.


Alan Barreto, coletor

A gente tem um pouco de medo, mas tudo bem, né? Lavando as mãos e colocando álcool em gel, trabalho normalmente nesta pandemia do coronavírus. A gente faz a limpeza das mãos várias vezes por dia. O trabalho não mudou muito. Ele é sempre feito em equipe. Sai um caminhão com um motorista e três coletores. Sou um dos coletores. Antigamente, saía um caminhão atrás do outro. Agora, o intervalo é de 30 minutos. Isso serve para evitar aglomerações de coletores e motoristas nos vestiários e pátio da empresa. Quando o caminhão chega, ele é desinfetado.

Trabalho na região do Ipiranga, na zona sul de São Paulo. Os moradores estão mais perto da gente, mais unidos. Falam com a gente mais do que antes. Pedem para a gente não esquecer de lavar as mãos. Acho que estão vendo que a gente está trabalhando nas ruas enquanto todos estão em casa e valorizam mais nosso trabalho. Tenho de sair para limpar a cidade. As pessoas têm de se cuidar. Estamos fazendo o serviço para eles. Estamos aí, dia a dia, limpando a cidade. Se a gente não trabalhasse, como ia ficar o lixo?


Mário Peribanez Gonzalez, médico

Esse é um chamado para resolver uma situação iminente e nós não temos escolha: a gente tem de se entregar. Estamos aqui para cumprir essa missão, com todo cuidado possível. Eu e todos da equipe estamos de prontidão para resolver um problema por vez, e todos os problemas têm de ser resolvidos. É o dia inteiro tomado de trabalho. A gente não desliga. Agora, fico no hospital de 30 a 40 horas por semana. Antes, ficava em torno de 20.

A gente lida com a satisfação de atender e resolver os problemas. Tem tudo: medo, apreensão e angústia de ver amigos ficando doentes. Ao mesmo tempo tem a recompensa de ver pacientes recuperados e o serviço estruturado para atender a demanda crescente. Isso compensa o esforço de estar aqui.

André Elias, bombeiro

Uma das principais mudanças causadas pela pandemia foi na utilização dos equipamentos de proteção individual. Para os casos confirmados de covid-19, nós usamos um macacão impermeável, avental, luvas e óculos. Todos são materiais descartáveis, a gente usa uma vez e já joga fora, menos os óculos. Ao deixar a vítima no hospital, a gente passa por uma desinfecção imediata também.

O atendimento do coronavírus não é complexo, mas tem o risco de contágio. Os casos não são muitos, mas têm impacto emocional grande. Ele aumenta quando uma notícia chega mais perto da gente. Nós perdemos uma sargento do Centro de Operações da Polícia Militar (Copom) recentemente por causa da covid-19. Abala. Você ouve dizer e de repente aquilo é real. Por trás da farda, existe um ser humano. Tenho medo de ser contaminado, mas tenho um dever a cumprir. Somos a esperança da população. Nós também estamos isolados. Quando não estamos no quartel, estamos em casa, em quarentena. É casa, quartel, quartel, casa. Mudamos a escala de trabalho para diminuir o contato diário com as pessoas nos quartéis, mas nós não temos home office.

Leonardo José Rolim Ferraz, médico

Sou responsável pela UTI do hospital e tenho atividade não assistencial, de definir planos e estratégias para o atendimento. Também fico à beira do leito, como qualquer outro médico, mas depende do dia. A pandemia mudou minha rotina. Bastante.

Confesso que não imaginava que a situação fosse tão dramática. Tenho receio da incapacidade de cuidar do paciente e também de me contaminar. O estresse das primeiras semanas foi o receio do que estava por vir. Agora, outro componente de tensão é ver colegas doentes. O impacto que isso tem é muito grande. Você pensa: “poderia ser comigo”. E poderia mesmo. Por isso, mudou a relação com os outros médicos. Todo mundo está mais próximo e mais interessado no jeito como o outro está. A gente se apoia um no outro. Sempre foi assim, mas agora é mais. A gente precisa estar bem para cuidar do outro. O hospital tem salas de descompressão e grupos de escuta. Eu já fazia meditação e tenho feito mais vezes por dia agora.

Simone Esser, farmacêutica

Em um curto período, tivemos de nos adaptar a uma rotina totalmente diferente, pois estamos na linha de frente desta pandemia. Nossa maior preocupação é com a segurança: a nossa segurança e dos nossos clientes. Somos orientados pela empresa, seguindo as indicações dos órgãos de saúde, como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Ministério da Saúde do Brasil. Como gerente farmacêutica, oriento as equipes sobre o uso e descarte dos materiais.

É um misto de sensações estar na linha de frente. Claro que o medo vem em alguns momentos, mas isso fica pequeno perto do sentimento de responsabilidade e do amor à profissão. Eu me sinto uma heroína por estar disponível para a população, podendo trazer um pouco de calma neste momento tão tenso.


Maciel Alves, funcionário de mercado

Trabalho na linha de frente no atendimento ao cliente do supermercado. É uma loja grande, com 236 colaboradores. Entre outras coisas, fico monitorando se as mudanças que adotamos por causa da pandemia estão sendo cumpridas. Nos primeiros casos, as pessoas estavam assustadas e nervosas. Hoje, o clima é de tranquilidade. Percebi que os clientes ficam o menos tempo possível aqui. Fazem as compras em 15 minutos. Perguntam onde está tal coisa e já vão para o caixa.

Não tenho medo de contaminação. Estou tomando todos os cuidados e, por isso, me sinto bem tranquilo. Estamos fazendo tudo de acordo com o Ministério da Saúde. Quando chego em casa, tiro os sapatos, deixo a roupa do lado de fora da casa e vou direto tomar meu banho. Só aí falo com meus pais e com os meus dois irmãos. Antes, só tirava os sapatos.


Janaina Tavares, entregadora

Eu recebo pouco apoio dos aplicativos para os quais trabalho fazendo entrega de refeições de bike. Tive de comprar meu próprio álcool em gel. Não ficou caro porque paguei o preço de custo. Foram R$ 18 em um frasco de 500 ml. Uso direto, a cada viagem. Eu só uso luvas porque ganhei de uma cliente. Como ando em uma bicicleta compartilhada, ali na região da Vila Olímpia, faço sempre a higienização dela e das minhas mãos também. Mesmo assim, percebo que alguns clientes não querem que eu toque na embalagem da comida na hora da entrega. Eles preferem pegar direto na bag. Acho que tudo isso está unindo mais as pessoas. É minha sensação. Espero que essa doença não castigue tanto nossa população como está sendo nos outros países. Quero que as pessoas que não estão levando a sério se conscientizem antes da doença chegar a seus familiares e que os políticos pensem no País e na população, olhem por todos, sem priorizar classe social, cor e de onde a pessoa vem. Que eles nos priorizem como pessoas que merecem ser protegidas e respeitadas.


Daniel Teixeira, fotógrafo

Não preciso esperar o sinal fechar para atravessar a avenida. Perco a noção da hora andando pelas ruas de São Paulo iluminadas apenas pelas luzes dos postes. Não esbarro em mais ninguém nas calçadas, aliás, não devo. Também não posso apertar a mão ou abraçar mais ninguém além de meu filho e mulher depois de um processo de higienização que me obriga a recusar as boas-vindas do menino. O mundo parou e qualquer fotojornalista se sente compelido em ir às ruas num momento como esse. A sensação de ver os fatos de perto, mais do que qualquer um, e extrair um trabalho em que possa não só informar, contar história, e também, quem sabe, inspirar e compadecer, é quase um vício. Mas esse entusiasmo pode trazer perigo.

É parte do ofício. Com a experiência, aprende-se a medir essa distância respeitando os riscos, mas desta vez o perigo pode estar em qualquer lugar. O entusiasmo dá lugar à preocupação pelas pessoas de casa. Não é como apanhar da polícia ou levar uma pedrada numa manifestação. Vai além da empatia por alguém que não conheço e chora pela morte do filho. Desta vez, a adrenalina de fotografar é substituída pela razão como nunca antes.


James Alan, coveiro

Este é o momento mais tenso desses sete anos. Nós fazíamos 40, 45 sepultamentos por dia. Hoje, fazemos 10, 15 a mais. O cuidado é redobrado por causa da pandemia. Redobrado e ao quadrado. Estou exposto e sei que corro risco de ser contaminado. Na maior parte do tempo, eu estou de luva e máscara, que são trocadas a cada duas horas. Quando tiro os EPIs, uso álcool em gel, que sempre está no meu bolso. Depois dos sepultamentos, eu evito contato com os objetos e não coloco a mão no rosto. Nossa rotina inclui bota, luva, máscara, uniforme e boné. O macacão é para o sepultamento.

Não tem velório nos casos de covid. Os sepultamentos são rápidos, com poucos familiares. Um caso me chamou a atenção. Um rapaz veio para enterrar o pai. Três dias depois, ele voltou para enterrar outro parente. E ainda tinha outro internado. Todos com covid-19. Fiquei impressionado. Cada família reage de uma forma na hora do enterro. Tem gente que chora, grita ou canta. Se a gente se envolver emocionalmente com cada um, nosso lado psicológico não vai aguentar.

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