O
movimento de isolamento social causado pelo novo coronavírus confinou muita
gente em casa, mas diversas restrições foram aliviadas pela tecnologia. A
comunicação instantânea conecta amigos e colegas de trabalho, enquanto
aplicativos de entrega e sites de comércio eletrônico permitem que o consumo
prossiga. Serviços de streaming de vídeo e música garantem alguma distração.
Mas e se a pandemia atual tivesse chegado no início dos anos 2000, quando os
pilares da internet atual ainda estavam se formando?
Uma boa dica para entender como seria esse
universo paralelo vem justamente de quem primeiro sofreu com o coronavírus: a
China. Entre 2002 e 2003, o país asiático já tinha sido paralisado por outra
epidemia, a da Sars. Os chineses ficaram trancados em casa para se proteger e o
movimento acabou impulsionando o comércio eletrônico interno – o que deu
musculatura para uma pequena empresa local se tornar um gigante global: o
Alibaba.
Aqui no Brasil, porém, o cenário foi diferente:
eram tempos em que apenas 12,8% das casas tinham acesso a internet, segundo a
primeira pesquisa TIC Domicílios, realizada em 2005 pelo Núcleo de Informação e
Comunicação (NIC.br). Do universo de casas conectadas, só 40% tinham uma
conexão de banda larga. O resto? Internet discada.
A maioria dos brasileiros conseguia mesmo
acessar a rede pela escola, no trabalho, na casa de terceiros ou nas lan
houses, que começavam a decolar na época.
“No início dos anos 2000, quem estava em
quarentena era a internet”, diz Carlos Affonso Souza, diretor de Instituto
de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS-Rio). Ele faz referência ao
fato de que, além da conexão ser rara, ela também acontecia quase sempre por um
computador de mesa (desktop), muitas vezes compartilhado pela família toda. “A
gente precisava ir até onde a internet estava. Hoje, a rede nos acompanha o
tempo todo”, diz.
Para Souza, os dias numa quarentena em 2004 ou
2005 passariam a impressão de serem mais compridos, porque não estaríamos na
internet sempre. “A percepção de tempo é alongada quando não estamos
ansiosos e bombardeados por informação”, afirma.
Orkut e blogs
Para quem estava online, é possível que boa
parte do tédio fosse preenchida no Orkut – a rede social do Google havia sido
criada em 2004 e, no ano seguinte, já estourava em popularidade no Brasil.
“É possível que até notícias falsas sobre a pandemia, que hoje estão no
WhatsApp, aparecessem em comunidades como “Verdades sobre a
quarentena”, diz Souza.
Mais que isso: o Orkut poderia estar vivo até
hoje, caso houvesse um interesse global pela plataforma em meio à quarentena.
“Se houvesse sinais disso, o Google poderia ter se mexido”, diz
Berthier Ribeiro-Neto, diretor de engenharia da empresa na América Latina.
Mas a conta não era tão simples na época. No
início dos anos 2000, o Google ainda lutava para fazer sua ferramenta de buscas
ser algo rentável. O foco da empresa estava nisso – e não numa rede social com
recadinhos.
O serviço, porém, não seria o único canal de
expressão no isolamento. “Os blogs estavam começando a perder fôlego, e a
pandemia poderia ter revertido isso”, diz Mike Pearl, autor do livro The
Day It Finally Happens (O dia em que finalmente acontece, em tradução livre),
que trata da possibilidade de acontecimentos bizarros como o fim de antibióticos
efetivos. “Escrever um texto e distribuir para os amigos seria mais
prático do que mandar e-mails. Haveria posts virais e uma geração de blogueiros
famosos sobre a pandemia”, diz ele.
Áudio, vídeo e foto
Para Ribeiro-Neto, também abusaríamos das imagens
e dos vídeos, a despeito da baixa resolução. “Somos uma espécie grupal,
que se desestabiliza quando passa muito tempo isolada. Num momento de crise e
dor, suplantaríamos as deficiências tecnológicas para produzir conexões”,
diz ele.
Teria sido a chance para que câmeras digitais
rudimentares – como a Powershot, da Canon – se tornassem mais populares. E, com
elas, os sites de fotos, como o Fotolog e o Flogão.
Para muita gente, uma quarentena no início dos
anos 2000 talvez fosse basicamente um período de conexão por voz.
As videochamadas ainda eram restritas. O Skype,
por exemplo, só foi criado em 2003. Os primeiros notebooks com câmera embutida
começavam a chegar às lojas em preços proibitivos e as webcams tinham resolução
sofrível. “Em contrapartida, nessa época era estranho não ter uma linha de
telefonia fixa. Meus pais não me mandavam SMS ou e-mails para assuntos de
família. Eles ligavam”, diz Pearl.
O último adeus
Se por um lado, uma quarentena no início dos
anos 2000 poderia ter forçado um movimento de acesso à tecnologia, por outro
ela poderia ser o canto do cisne da vida offline para muitos. “As pessoas
com mais dinheiro estariam parcialmente conectadas, e as mais pobres, offline.
Mas acredito que os mais ricos acima de 35 anos estariam offline. Acho que as
pessoas assistiriam muita TV”, diz Pearl.
“Talvez a quarentena de 2005 fosse a última
chance que o mundo analógico teria para impedir a vitória acachapante do
digital. Talvez, muitos voltassem para os livros”, diz Souza, do ITS-Rio.
“E, quando fôssemos à internet, valorizaríamos o conteúdo que fomos
buscar.”
Como seria viver uma quarentena com a internet dos anos 2000?
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