Com quase 10 milhões de infectados em todo o mundo
e quase meio milhão de mortos, a pandemia de covid-19, que teve início no fim
de 2019, não dá sinais de que esteja arrefecendo, e a esperança de que uma
vacina possa parar o coronavírus cresce a cada dia. De acordo com balanço da
Organização Mundial da Saúde (OMS), há 141 candidatas a vacinas sendo
investigadas, sendo 16 já na fase de testes clínicos em humanos. A que está
mais avançada é a de Oxford, em fase 3, que será testada no Brasil.
Para discutir o que significam esses avanços e
quais são os desafios para ter um produto pronto e conseguir imunizar a maior
parte da população, o Estadão promoveu esta semana um debate com um
imunologista, uma microbiologista e uma demógrafa que acompanham a evolução das
pesquisas e da doença.
As pesquisas estão evoluindo a uma velocidade
nunca vista antes. Mas ainda há algumas incertezas sobre como funciona a doença
e sua relação com o sistema imunológico que podem ter impacto na produção de
uma vacina. Há também gargalos logísticos para conseguir vacinar todo mundo.
O coronavírus tem dado um “olé” na
ciência. Estudos recentes lançaram dúvidas sobre como se dá a resposta
imunológica dos pacientes infectados. Em geral, entende-se que uma pessoa ficou
imune se ela produziu anticorpos ao patógeno, mas notou-se que em pacientes
assintomáticos houve uma queda nos níveis desses anticorpos. Pesquisas com
vacinas terão de atentar para isso.
1. Toda semana há notícias de avanços, de que
alguma vacina chegou à fase de testes com humanos. O que falta para ficar
pronta?
Jorge Kalil: É impressionante o que aconteceu no
mundo. Desde que começou a pandemia, quase 30 mil artigos científicos foram
publicados e um número enorme de vacinas começou a ser testado. Registradas na
OMS são 141, mas a gente sabe que tem pelo menos umas 300 iniciativas pelo
mundo. E algumas chegaram extremamente rápido, como nunca se viu, às fases
clínicas. Muitas porque os pesquisadores estavam trabalhando com um primo do
Sars-CoV-2, que é o Sars-CoV-1, o Sars que acometeu uma parte do mundo no
começo dos anos 2000.
Em 2007 o mundo criou uma coalizão para se
preparar para essa pandemia que se chama CEPI – coalizão para emergências,
preparação e inovação -, justamente para que o mundo se preparasse para ter uma
resposta muito rápida porque a gente sabia que viria uma pandemia. Dentre as
vacinas que estão aí, há basicamente duas ideias por trás.
Uma é multiplicar bastante o vírus, inativá-lo e
usar como vacina. Outra é oferecer ao sistema imune uma proteína específica (do
coronavírus), que é a proteína da espícula. Acredita-se que ela vai desencadear
a produção de anticorpos que sejam neutralizantes. Se uma estratégia ou outra
der certo, acredito que nós teremos muitas vacinas no mundo, porque é uma
questão do vetor. Se erramos na premissa científica, aí talvez a coisa fique
complicada.
Natalia Pasternak: Sessenta anos atrás, o único
jeito que a gente sabia fazer vacina era cultivar o vírus e atenuá-lo ou
inativá-lo. Para fazer uma vacina assim, a gente tem plenas condições. O
Instituto Butantã, a Biomanguinhos, que são grandes plantas vacinais públicas,
têm perfeitas condições de fazer uma vacina à moda antiga. Elas são boas, são
eficazes, temos um monte delas no mercado, são perfeitamente seguras, mas
implicam cultivar o vírus para depois poder inativá-lo. É um vírus
respiratório, contagioso, então precisa de toda uma estrutura de segurança, que
a gente tem no Brasil.
Já as vacinas que vão lidar com a proteína, tem
várias maneiras de fazer. Ou vai usar vacinas genéticas, que vão usar o DNA ou
RNA do vírus alvo, o Sars-CoV-2, ou vai trabalhar direto com a proteína. A
logística é muito diferente. Já não precisa de um laboratório de segurança. Vai
trabalhar com plataformas que vão carregar uma sequência genética do vírus. A
vacina de Oxford, por exemplo, usa um adenovírus de chimpanzé, que não vai
causar nenhum mal pra gente. É usado como uma plataforma, um vetor onde se
coloca a sequência genética do Sars-CoV-2 que codifica a proteína da espícula,
que é a proteína que a gente acha que vai dar a melhor resposta imune.
Ao injetar a vacina nas nossas células, elas vão
produzir a proteína do vírus, vão apresentar isso para o nosso sistema imune,
que vai olhar, falar: ‘Opa, o vírus está aqui’, e montar uma resposta imune.
Mas o vírus nunca esteve lá. Só está a proteína, que nossas células fizeram.
Outra forma é fazer uma vacina de DNA, onde jogo direto a sequência de DNA do
vírus dentro da célula. E posso fazer isso com uma molécula de RNA, que é o
mesmo raciocínio. O RNA codifica a proteína. A vantagem dessas técnicas mais
modernas é não ter de trabalhar com o vírus Elas são mais rápidas, mais
versáteis. E tem uma grande vantagem dessas vacinas de DNA, RNA, e de vetor:
ter uma plataforma pronta, em que é possível só trocar de sequência genética de
vírus. Conseguindo isso, estaríamos preparados para uma próxima doença. Se vier
outro vírus, é só trocar a sequência genética e a vacina está pronta.
2. Uma vacina pode ficar pronta ainda neste
ano, como alguns estimam?
Kalil: Realmente elas chegaram em tempo recorde
em testes clínicos. E as fases 1 e 2 também foram em tempo recorde. Mas agora é
a história do ‘vamos ver’. O grande desafio é quando chega em fase 3 porque a
gente ainda não sabe o que vai dar. Nós temos até agora só dados indiretos,
como a imunização de macacos São indícios que a gente crê que correspondem à
proteção.
Mas precisamos ver se protege quando imunizar um
grande número de pessoas. E às vezes temos surpresas. Porque a gente pensava
que tinha de produzir só anticorpo neutralizante. Agora vemos que precisa ter
uma resposta celular. A gente tem de ver o que vai acontecer e se o regime de
doses que forem instituídas vai dar uma cobertura grande na população, que é
essencial, e se vai desenvolver uma memória para que depois de três ou seis
meses não tenha de tomar uma nova vacina.
3.Quando pronta, qual o caminho para chegar
ao Brasil? Vamos ter de importar ou teremos condições de produzir? Quais os
passos até a população começar a ser imunizada?
Natalia: Depende da formulação que for para
frente. Uma coisa é produzir vacina à moda antiga, que a gente já tem a
estrutura para fazer. Outra é uma moderna, para a qual não temos estrutura Mas,
ao mesmo tempo, elas são mais fáceis de fazer em laboratório, rendem mais por litro.
Então vamos ter de pensar numa estrutura se quisermos trabalhar com essas
vacinas mais modernas. E tem a questão de distribuição. DNA é uma molécula mais
estável, mais fácil de armazenar e transportar. RNA é super frágil. Temperatura
afeta muito sua estabilidade. Vamos ter de pensar como acondicionar, como
transportar para não degradar. Tudo isso vai influenciar como produz e
distribui.
4. E o que é vacinar uma população em larga
escala? Historicamente temos um programa muito bom de vacinação no Brasil, mas
que teve problemas nos últimos anos. A cobertura vacinal de doenças como
sarampo e febre amarela caiu e as doenças voltaram. Como isso pode afetar a
política de vacinação em um país tomado pela covid-19?
Marcia Castro: O programa de imunização no Brasil
de fato é um modelo internacional. O Brasil não só expandiu sua cobertura
vacinal, mas proveu vacinas sem custo para a população. Saiu de um cenário em
que dependia de importar vacina para um cenário em que produzia mais de 87% da
demanda nacional e ainda exportava. É absolutamente fantástico e só foi feito
graças ao SUS. O SUS não é só fila em hospital do Rio de Janeiro. Tem muita
coisa bacana que às vezes as pessoas se esquecem. Mas se o SUS não funciona
como deveria, é porque também não está sendo financiado como deveria.
Quando chega no momento atual… temos de produzir
em escala e vacinar em escala. Tem países na Europa que já estão mudando a
produção industrial, se adaptando para fabricar os dois tipos de vacina. Seja
qual for que fique pronta primeiro, já tentaram otimizar a produção industrial
para produzir rapidinho e vacinar a população. Se a gente esperar para fazer
esse planejamento quando a vacina estiver pronta, é tarde. E, quando tivermos a
vacina pronta, teremos de vacinar 210 milhões de pessoas. Aí é outra questão:
quem ganha e quem perde. O Brasil é um país extremamente desigual. Se a gente
conseguir produzir uma vacina no País que não dependa de ninguém, que não
dependa de importação, ótimo. Porque se depender de importação pode acontecer
como na H1N1.
Os países ricos compraram a vacina toda e os
pobres tiveram de esperar. Ou o que aconteceu agora, em que se queria comprar
máscaras e os países ricos tinham comprado tudo. Nunca o mundo aprendeu o preço
da globalização como agora na pandemia. Mas tendo a vacina pronta: quem é que
será vacinado primeiro? É uma questão importante. Vai fazer uma campanha
nacional? Aí vai precisar de ajuda da rede de atenção básica, mas a atenção
básica está totalmente esquecida na resposta dessa epidemia. Os agentes
comunitários de saúde, que poderiam estar atuando no campo – sendo os
‘detetives covid’ como a gente chama aqui nos Estados Unidos -, fazendo
rastreamento de contato, podiam ajudar na campanha de vacinação. Eles não foram
treinados, não receberam equipamento, não podem trabalhar. Para fazer uma
campanha de vacinação em massa, que atinja toda a população, no interior do
semiárido, da Amazônia, que chegue às populações indígenas, que atinja todo
mundo, precisa ter uma coisa muito bem coordenada, usando a rede do SUS, a rede
de atenção básica.
Outro ponto é que há um movimento antivacina que
infelizmente está crescendo no Brasil. E temos naturalmente algumas pessoas que
não poderão ser vacinadas, as que têm problema com imunidade, alguma
comorbidade. Se essa parcela se somar àqueles que não acreditam em vacina e
esse número for muito grande, talvez nem imunidade de rebanho a gente consiga
ter.
Se todas as pecinhas do quebra-cabeças derem
certo, ainda teremos essa para pensar. Para dar tudo certo, a gente tem de ter
uma vacina que seja produzida no Brasil, não dependa de importação, em rápida
escala, que não demore muito tempo para ter todas as doses e que tenha uma
campanha de vacinação usando a atenção básica para realmente atingir todo
mundo. Se uma peça não se encaixa, não teremos uma campanha de vacinação
igualitária, que beneficie cada brasileiro.
5. E mesmo que tudo dê certo, não vamos ter
210 milhões de doses imediatamente. Como se define quem recebe primeiro?
Marcia: Teoricamente, se tiver de traçar uma
prioridade, ela é definida em razão do risco de mortalidade. Para isso a gente
precisa ter a capacidade de analisar os dados do Brasil e entender exatamente
quem é o grupo de risco. Porque não dá para a gente simplesmente pegar o risco
de mortalidade da China. Quando chegou à Itália mudou o risco por idade, quando
chegou aos Estados Unidos, também já mudou. Temos um padrão de comorbidades e
desigualdade que são diferentes desses outros países. Se a gente quiser traçar
um grupo prioritário para começar a vacinação de forma prioritária, porque não
tem doses para todo mundo ou as doses estiverem sendo produzidas aos poucos,
então a gente tem de entender esse grupo de risco.
Kalil: Na China, a Sinovac (empresa que está
testando uma das vacinas mais avançadas) já está fazendo uma grande área
industrial para produção. Eles disseram que vão conseguir produzir 100 milhões
de doses por ano. Isso levaria 12 anos para imunizar toda a população da China.
Desde que começamos a discutir a questão, digo que temos de fazer o roadmap, o
planejamento até a imunização final. Se começar a fazer fábrica em todo lugar,
vai faltar liofilizador, que é o aparelho da fase final da vacina. Vai faltar
até frasco e tampa, porque são poucos produtores, graças à globalização.
6. E a primeira vacina a ficar pronta não
necessariamente será a melhor, certo? Os testes em macacos com a vacina de
Oxford indicaram limitações.
Kalil: Quem ganha uma corrida de vacina não é
quem chega primeiro, é quem chega em melhores condições. Isso significa:
proteger da doença, eliminar o vírus, ter uma cobertura muito grande na
população, e desenvolver uma boa memória imunológica. Não sabemos se as vacinas
que estão mais avançadas terão isso, porque as premissas científicas (de como
funciona o coronavírus) ainda não são conhecidas. O que preocupa nessa vacina
de Oxford, embora todos estejam torcendo para que dê certo e diminua essa
pressão social que estamos sofrendo, é que, no experimento em macacos, ela
mostrou que protegia da pneumonia, mas não eliminava o vírus circulante nas
mucosas. Não sabemos se isso seria extrapolado para os homens, mas isso pode
significar – não sabemos – que o indivíduo ficaria protegido da doença grave,
mas continuaria transmitindo o vírus.
É grave em termos de saúde pública, porque as
pessoas que não estiverem vacinadas estarão sob ameaça. Temos de observar. Esse
estudo está sendo feito em Oxford, vai ser feito no Brasil e os Estados Unidos
vão duplicar o número de indivíduos e incluir as populações de risco. Tudo isso
está em andamento. Estamos todos sofrendo problemas físicos e mentais com a
pandemia, a ansiedade é grande. Mas nós, cientistas, temos de ter muita cautela
e ser muito críticos.
Natalia: Não é uma corrida para ver quem vai
chegar primeiro. É extremamente necessário que vários grupos continuem
trabalhando nas suas respectivas estratégias. Muitas vezes o pessoal pergunta:
“Ai, mas por que tem tanta gente fazendo a mesma coisa?”. Ainda bem
que tem tanta gente fazendo a mesma coisa.
Isso é sem precedentes na história. Essa coisa é
muito importante, então a gente precisa de muita gente trabalhando para que se
chegue a várias estratégias vacinais que funcionem e que possam ser produzidas
localmente, para não ter tantos problemas de logística, transporte, importação.
Quem chegar primeiro vai dar um fôlego para que as outras continuem. Na vacina
de Oxford, parece que realmente sobrou carga viral no nariz e na garganta dos
animais, que é de onde são retiradas amostras para fazer testes. Os animais
ficaram protegidos quando foram vacinados, não ficaram doentes, mas o vírus
continuava no nariz. O problema é que ninguém viu se esse vírus estava
realmente ativo.
Outra coisa é que, ao inocular os animais, se
coloca uma grande quantidade de vírus no nariz deles. Os testes consistem em
vacinar os animais e, depois de algum tempo, desafiá-los com o vírus para ver
se estão protegidos. Em pessoas a gente não faz isso, mas em animais se inocula
diretamente o vírus no nariz deles. Em uma grande quantidade que não
corresponde ao que acontece na natureza, e isso pode ter afetado o resultado.
Mas vamos partir do pressuposto que realmente a vacina de Oxford protege só
contra a doença e não eliminou o vírus.
Pode ser que as pessoas, apesar de não ficarem
mais doentes, continuem transmitindo. A gente vai jogar no lixo essa vacina?
Não. Se ela for segura e impedir que as pessoas tenham a forma grave da doença,
a gente vai usar e aproveitar para continuar pesquisando outras vacinas. Por
isso a primeira vacina não precisa necessariamente ser a melhor. A gente sabe
que tem vacinas que às vezes funcionam muito bem em pacientes jovens, de 18 a
50 anos, mas não em idosos. A gente não vai usar? Vai usar nessa população
enquanto trabalha em outra que funcione melhor em idosos.
Temos de trabalhar com a hipótese de que elas
não vão ser as melhores, mas o mais importante é que sejam seguras, testadas e
eficazes, mesmo que parcialmente. O que é muito importante é não perder o rigor
científico. Porque se alguma coisa der errado, como ter efeitos colaterais que
não foram detectados porque não se fez uma fase 3 direito, as consequências
disso para a vacinação em si serão terríveis.
Marcia: Temos um movimento antivacina crescendo,
e a comunicação em torno da covid está sendo muito precária. Então, se por acaso
a primeira vacina for nesse sentido, de prevenir a doença, mas não que a pessoa
infecte outros, isso tem de ser muito bem explicado, porque a chance de
aumentar o movimento antivacina por isso é muito grande.
Kalil: Nós partimos do pressuposto de que o que
queremos é um tipo de anticorpo que neutraliza o vírus. Mas quando se estuda o
grupo de pessoas que ficaram boas da doença, vê que tem muita gente que ou não
tem anticorpo detectado ou o anticorpo não é neutralizante, ou é muito pouco.
Jogamos as fichas todas em ter anticorpo neutralizante, e tem gente que se
defende de outra forma. O sistema imune é muito mais diverso. Eu estou
estudando quais são os fragmentos de proteína que são reconhecidos pelos
glóbulos brancos chamados de linfócitos T.
A gente sabe que muita resposta é linfócito T. E
tem quem ache que muita gente não pega doença, apesar de estar convivendo com
alguém que tem, porque tem uma resposta de células T que é muito forte por
causa de outros adenovírus. Tem famílias em que um pega e o outro, dormindo na
mesma cama, não. Por isso, quero fazer uma vacina cientificamente mais
sofisticada. Estamos estudando a resposta T. Coletamos amostras de 220
indivíduos convalescentes e estamos estudando detalhes da resposta. A outra
coisa é que às vezes injetando a vacina no músculo não produz anticorpo que
defenda a mucosa nasal e oral, então estudamos vacinas que possam ser dadas
pela boca ou pelo nariz.
7. Tipo um ‘Zé Gotinha’ do coronavírus?
Kalil: Se fizéssemos uma vacina estável em gota,
a facilidade de imunização seria enorme. Então temos de apoiar a ciência.
Investir US$ 100 milhões, US$ 200 milhões, US$ 1 bilhão. Isso não é nada perto
do que está acontecendo em termos econômicos. O mundo está arrasado.
8. Essas questões vieram à tona com uma
pesquisa que mostrou queda na presença de anticorpos em pacientes
assintomáticos. Quais são as implicações disso? Poderá não haver imunidade
permanente?
Natalia: Os pesquisadores compararam 37
pacientes assintomáticos com 37 pacientes que apresentaram sintomas. Eles
mediram nos pacientes os níveis de IgG, que é um anticorpo de memória longa e
viram que, depois de dois meses, 40% dos assintomáticos perderam IgG no sangue.
Não dava mais para detectar. E isso ocorreu também em 13% dos sintomáticos.
Depois saiu um outro trabalho, que acompanhou algumas famílias para ver como
era a transmissão e a formação de anticorpos e também reparou que tinha gente
que foi contaminada, mas nem formava anticorpo.
Ainda estamos engatinhando para entender a
resposta imune para esse vírus. Ela parece ser um pouco diferente daquele
padrão com o qual estamos acostumados. Esse vírus mostra que não é todo mundo
que produz anticorpo, ou que produz, mas é pouco, ou que produz e depois cai
rapidamente. Mas isso não quer dizer que as pessoas não estão imunes.
O IgG não é a única resposta imune de uma
pessoa. Ele é apenas um marcador muito usado. E é muito usado porque é fácil de
medir e geralmente tem uma boa correlação para dizer que uma pessoa já teve a
doença e ficou imune. Mas nesse caso parece que ele não correlaciona tão bem.
Porque desgraça pouca é bobagem e esse vírus tinha de dar mais um olé na gente.
Existem outros tipos de resposta imune. Temos a resposta de células T, que
parecem ser a resposta principal no caso do coronavírus. Esses pacientes que
foram acompanhados nessas famílias tiveram a resposta de célula T medida.
E viu-se que as pessoas foram infectadas,
tiveram a resposta de célula T, mas não fizeram anticorpos. O que a gente não
sabe é se essas células T geraram memória. Ou se mesmo sem a gente detectar
anticorpos essas pessoas geram um pouco, mas numa quantidade muito pequena que
não é detectada nos testes, mas que depois formou células de memória e que
poderão gerar uma resposta imune se voltarem a ter contato com o vírus. Tudo
isso ainda está no ar.
O que isso quer dizer, num primeiro momento, é
que o IgG não é o marcador ideal. E os testes que estamos fazendo de
soroprevalência na população são com IgG. Pode ser que a gente esteja deixando
de contar pessoas que já tiveram, se recuperaram, não produziram anticorpos,
mas produziram resposta de célula T. Outros estudos mostraram que tem pessoas
com resposta cruzada com outros coronavírus – reação de células T. Conseguimos
detectar no sangue de outras pessoas células T que reagiam com outros
coronavírus, de resfriado comum. A gente não sabe se de repente pessoas que já
tiveram esses coronavírus de resfriado comum, e desenvolveram respostas de
células T, ficaram menos suscetíveis ao novo coronavírus.
Será que elas ou nem pegam ou pegam uma doença
mais leve? Tudo isso a gente ainda está estudando. E tudo o que a gente vai
fazer de vacina depende dessas premissas, que ainda não estão prontas. Mas não
é motivo para ninguém se desesperar se o IgG cair. Isso não quer dizer que está
automaticamente suscetível a uma reinfecção.
9. Considerando o momento atual da pandemia,
em que vários lugares no mundo que reabriram voltaram a ter casos e estão sendo
obrigados a fechar novamente. Sem a vacina, talvez teremos de planejar um mundo
em que ficaremos retomando o isolamento de tempos em tempos, até ter um
produto?
Marcia: Acho que sem a vacina a gente vai
precisar de ter mecanismo de vigilância muito forte, para tentar conter e
manter a coisa num nível aceitável. O Brasil poderia estar fazendo isso e
ensinando ao mundo como responder a uma pandemia usando o SUS e a rede de
atenção básica. A gente já perdeu uma chance de fazer a coisa certa. Agora que
as cidades estão reabrindo, a gente ainda pode fazer isso, manter sob controle
sem uma vacina. Mas isso só vai ser possível se usar o SUS, a rede de agentes
comunitários de saúde. Só precisamos treiná-los e equipá-los com equipamentos
de segurança para começar a fazer rastreamento de contato. Sem isso, vai ser
abre-e-fecha e aí ninguém aguenta, nem a economia nem a população.
Kalil: Eu fiquei surpreso que, quando começaram
as atividades na Europa, parece que as pessoas esqueceram. Eu vi um vídeo de
uma rua de Paris com um bistrô atrás do outro coalhado de gente, e ninguém com
máscara. As pessoas em países super educados e desenvolvidos não aprenderam.
Então, se a gente não ensinar muito bem, as pessoas não vão entender. Elas não
veem o vírus, e as pessoas doentes desaparecem de circulação. As pessoas têm de
ter a consciência, porque essa doença é uma roleta russa, você nunca sabe o que
vai dar para você. Gira o tambor e não sabe se vai sair tranquilo ou se vai
receber um tiro. A gente tem de se cuidar, e para isso teremos de pensar
atividade por atividade, empresa por empresa, como agiremos de maneira
inteligente na rua, nos locais públicos e também nos locais de trabalho.
Natalia: Para conseguir reabrir com uma certa
segurança, precisa de monitoramento, testagem e de uma boa comunicação com a
população. Mas não fazemos testagem o suficiente, não fazemos rastreamento de
contatos nem monitoramento, não temos uma boa comunicação com a população nem
transparência dos dados, e temos um governo federal preocupado em mostrar que
não está acontecendo nada e não é sério. Já vemos em algumas cidades as pessoas
achando que liberou geral. As consequências podem ser catastróficas e podemos
ficar indo de lockdown em lockdown para ver se segura. Sem testagem,
rastreamento e comunicação com a população, estamos trabalhando no escuro. Se
alguém não entendeu nada disso, pode perguntar ao ministro da Saúde, assim que
a gente tiver um.
Os avanços e os desafios para conseguir uma vacina
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