Quando Charlize Theron – protagonista e uma das
produtoras executivas do novo filme The Old Guard, na Netflix, no dia 10 de
julho – planejou lançar o longa, ela também não sabia que os EUA estariam
vivendo uma convulsão social (não inédita, é verdade) por conta de violência
policial e racismo, além, claro, de uma pandemia gravíssima. Mas ela e a
diretora Gina Prince-Bythewood escolheram a estrela em ascensão Kiki Layne para
um dos papéis principais antecipando uma discussão corrente em Hollywood: a
representação de forças policiais e do exército.
“É importante ver que as Forças Armadas não
são compostas apenas de homens brancos”, diz Kiki, em uma entrevista
coletiva virtual com jornalistas da América Latina. “Os filmes grandes que
se focaram nisso tendem a se apoiar nessa narrativa. A verdadeira questão
agora, porém, é que os protestos estão se expandindo no sentido de
responsabilizar todo tipo de indústria sobre como pessoas negras são tratadas e
representadas. Isso também inclui a indústria do cinema. O mundo é realmente
diverso, pessoas diferentes fazem parte de narrativas das quais historicamente
foram deixadas de fora, inclusive no cinema. Sou grata de ser parte do grupo
que está expandindo essa barreira.”
Para ela, é importante que atores e produtores
estejam agora, mais do que nunca, cientes da natureza das histórias que querem
contar. “Como mulher negra, os tipos de histórias e papéis a que tivemos
acesso sempre foram muito limitados, e, nos últimos anos, a importância da
representatividade se tornou pública, porque de fato faz diferença como as
pessoas se veem retratadas. Estou muito consciente desse impacto, e o considero
uma oportunidade para a arte do cinema também servir a um propósito
maior.”
No início do filme, Nile (Layne) é uma fuzileira
naval do exército americano na guerra do Afeganistão que sobrevive sem
explicação a uma ferida mortal perpetrada por um homem que mantém mulheres como
reféns. Essa habilidade extraordinária a conecta com um grupo de imortais que
vagam pelos séculos tentando encontrar sentido para sua própria imortalidade, o
dilema filosófico central do filme. A equipe é liderada por Andy (Charlize
Theron), cujos questionamentos sobre a validade de seu talento extraordinário
permanecem sem respostas. A presença de Nile, personagem de bondade e senso de
ética rígidos, porém, empurra Andy para uma possível nova perspectiva de vida.
A diretora Gina Prince-Bythewood vem do cinema
independente – seu primeiro filme, Love & Basketball (2000), estreou no
Festival de Cinema de Sundance e foi mais tarde premiado. The Old Guard é a sua
primeira investida no “cinemão” americano. “Meu último filme
tinha sido um de US$ 7 milhões, e esse, bem, é de muito mais”, diz a
diretora. “Mas o que é interessante é que um amigo (Rian Johnson, do
último ‘Star Wars’) me disse que não importa o tamanho de um orçamento, mas é
preciso contar uma boa história antes de tudo.” Claro que os efeitos e
“brinquedos”, como ela chama as vantagens do grande orçamento,
ajudaram muito: o filme é recheado de cenas de luta, tiroteios e explosões.
“A grande questão foi a pressão para
realizar esse filme”, disse a diretora. “Em primeiro lugar, eu não
queria desapontar Greg Rucka e Leandro Fernández (autores da HQ em que o filme
é baseado), mas também a audiência. A graphic novel deles foi a minha bíblia na
produção, e a usamos inclusive no set.”
Charlize Theron também encontrou valor na
leitura. “O material fonte é muito rico, desde o começo percebi que tinha
ali muito potencial. Fisicamente, ela não parece comigo, mas, além disso, sua
essência é verdadeira. Quisemos nos manter próximas do que o Greg Rucka tocou e
o que nos pareceu muito relevante e irreverente.”
Rucka é um roteirista de quadrinhos aclamado nos
EUA, com mais de um prêmio Eisner no currículo, e, entre seus trabalhos mais
conhecidos, está uma reinvenção da personagem Mulher-Gato para a DC Comics. A
terceira parte da trilogia The Old Guard, feita em parceria com o ilustrador
argentino Leandro Fernández, sai em 2021.
“Andy, de várias maneiras, carrega uma
fardo de dor e luto”, explica Rucka, sobre a personagem principal.
“Não há ninguém que possa entender pelo que ela passou, e ela também está
cansada. Mas acredito que a gente mede o poder dos heróis pelo que eles têm de
enfrentar e, nesse caso, acho que o que ela precisa enfrentar é ela
mesma.”
No filme, a personagem de Charlize tem nos
amigos imortais Booker (Matthias Schoenaerts), Joe (Marwan Kenzari) e Nicky
(Luca Marinelli) a única espécie de família em muito tempo – ela é a mais
velha, e seus entes queridos ficaram num passado distante. Já Nile, tomada pela
descoberta de sua nova habilidade, precisa encarar o fato de que sua família
não poderá acompanhá-la na jornada.
Rucka – também roteirista no filme, ao lado da
diretora – conta que Prince-Bythewood apontou que a personagem Nile precisaria
de mais profundidade do que no livro, e que ele concordou imediatamente.
“A visão dela foi o que trouxe esse filme à vida”, diz o escritor.
“As experiências de vida dela são muito diferentes da minha, mas acho que
isso permitiu a ela uma conexão íntima com as personagens muito forte, talvez
mais forte do que aquela que um diretor homem poderia alcançar.”
Apesar de ter sido filmado apenas no Marrocos e no
Reino Unido, o filme passa por diversos países e épocas, o que lhe empresta um
sentido de globalização e intercâmbio cultural, assuntos temidos ou evitados
por diversos líderes políticos globais no século 21, fortemente contrários à
imigração, por exemplo. Ao mesmo tempo, a história também traz reflexões
sinceras sobre mortalidade e luto – um bom pacote, afinal.
Uma tomada consciente para o cinema
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