A crise causada pelo novo coronavírus deve levar à maior queda do padrão
de vida do País desde a década de 1940, quando começa a série histórica.
Calculada a partir do Produto Interno Bruto (PIB) per capita, a retração
esperada é de 6,7% este ano – e mais da metade dos brasileiros já percebe que
está em uma situação pior do que antes da pandemia. Até então, o maior recuo
havia sido em 1981, mostra reportagem da edição desta segunda-feira, 3, do
jornal O Estado de S. Paulo.
De crise em crise, o brasileiro vai perdendo o que havia conquistado na década
passada. Segundo levantamento da Confederação Nacional do Comércio de Bens,
Serviços e Turismo (CNC), de 2011 a 2020, o PIB per capita deve recuar 8,2%
ante uma alta de 28% na década anterior, marcada pelo boom de preços dos
produtos básicos, como a soja e o petróleo.
Só neste ano, o PIB por habitante deve cair quase o mesmo que a retração vista
na crise de 2015 e 2016. Em valores de 2019, o indicador era de R$ 34,5 mil no
ano passado e deve cair para R$ 32,2 mil este ano. Caso esse cenário se
concretize, o padrão de vida voltaria ao nível de 2008.
“Antes da covid-19, o baixo crescimento entre 2017 e 2019 já fazia com que
as pessoas achassem que a vida não tinha melhorado”, diz Fabio Bentes,
economista sênior da CNC.
“O País entrou em uma montanha-russa: depois de uma forte ascensão
econômica, o que foi conquistado se perdeu. É como pagar a prestação de um
carro que foi roubado e que não tinha seguro – você perde o patrimônio e fica
com a dívida”, afirma Renato Meirelles, presidente do Instituto
Locomotiva.
Por ser uma média, o PIB per capita não mostra como todos os brasileiros devem
atravessar a pandemia. Um estudo da ONG Oxfam, por exemplo, apontou que a
fortuna de bilionários brasileiros cresceu US$ 34 bilhões entre março e julho.
“Quando a classe privilegiada fica mais rica, a perda das camadas baixas é
ainda maior. A renda per capita precisa reagir para que a sensação de pobreza
da maior parte da população seja superada”, avalia Bentes.
Outro estudo, da Fundação Getulio Vargas (FGV), aponta que o auxílio
emergencial de R$ 600, pago a brasileiros de baixa renda, reduziu a extrema
pobreza ao menor nível em 40 anos. Só que o efeito é temporário, já que o
programa é de alto custo.
Novo normal
Segundo pesquisa feita pelo Instituto Locomotiva a pedido do jornal O Estado de
S. Paulo, além de mais da metade (54%) dos brasileiros afirmar que seu padrão
de vida piorou, seis em cada dez deles estimam que vai levar mais de um ano
para reconquistar o que tinham. Além disso, um terço dos entrevistados que têm
plano de saúde, pagam escola particular para os filhos ou empregam um
trabalhador doméstico afirma que não conseguirá manter ao menos um desses
serviços.
Na pandemia, os planos perderam 283 mil clientes, ficando com 46,8 milhões de
usuários, segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
No caso das escolas, em maio, a inadimplência na capital paulista era de 32,1%,
segundo o Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino do Estado de São Paulo
(Sieeesp). Os pais que tiveram salário reduzido ou ficaram desempregados
trocaram os filhos para a rede pública ou para opções mais baratas.
A escola Luminova, em São Paulo, é um exemplo disso. “Tenho alunos vindos
de instituições que cobravam até quatro vezes mais”, diz o diretor
acadêmico, Luizinho Magalhães. Em abril e maio, a escola registrou 18 novas
matrículas.
‘Um dia de cada vez’
Quando a vendedora de móveis Sarita Largura Singh, de 44 anos, pensa nos
últimos cinco anos, só consegue achar que a vida ficou mais difícil. “Acho
que a vida começou a piorar por aí mesmo, em 2015, e desde então, a gente vai
andando de lado, mas não sente mais que a vida está melhorando e nem aquele
orgulho de conquistar as coisas que tinha antes”, conta.
Neste ano, a crise provocada pela covid-19 mudou os planos da família. Vendo o
orçamento doméstico ficar apertado durante a quarentena, sem poder trabalhar e
sem ter mais com quem contar, ela trocou a filha mais nova, Marília, de 15
anos, de escola durante a pandemia.
No primeiro ano do ensino médio, Marília trocou em abril uma escola que custava
R$ 2.200 por mês por uma de R$ 660. “Um dia, o pai dela ligou para dizer
que não pagaria por mais nada. Entrei em pânico. Tivemos a sorte de encontrar
essa opção e ela se adaptou muito bem.”
Sarita diz que, dependendo da situação da economia nos próximos anos, a filha
pode permanecer na escola nova. “Mas é difícil fazer qualquer previsão,
vivo um dia de cada vez.”
Queda de 90% na renda
Felipe Trotta, de 40 anos, ainda se lembra da primeira vez que sentiu os
efeitos da crise econômica batendo à sua porta. Em 2015, havia inaugurado a
casa de espetáculos Baródromo, no Rio, voltada à apresentações de samba.
“A ideia era reunir um espaço de celebração da música na região da cidade
onde o samba nasceu e que estava sendo revitalizada por projetos da Petrobrás.
O futuro parecia perfeito.”
Naquele ano, porém, o País entraria em recessão e os efeitos da queda do preço
do petróleo e das denúncias de corrupção enterrariam os investimentos no
bairro. A casa de shows quase faliu. “Acabamos mudando de endereço, mas
foi até melhor. Depois da crise, a casa crescia. Até que veio a pandemia e
fechamos de vez”.
Trotta ficou só com outro estabelecimento que tinha, o Cine Botequim, de menor
porte. “A queda na renda foi de 90%. Cartão de crédito e previdência
privada já eram, e acabei mudando para uma casa menor. A gente tinha criado um
museu informal do carnaval, mas o sonho foi desfeito. As alegorias, que
enfeitavam a casa de shows, agora envelhecem em um galpão.”
Padrão de vida do brasileiro deve ter queda recorde
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