Não vai ser aquela celebração com a qual muitos
sonhavam. Mesmo que não haja absolutamente nenhum contratempo no teste e na
aprovação de uma vacina eficaz contra a covid, que esteja liberada para uso no
início de 2021, ainda vai levar um bom tempo para a vida voltar ao normal. E
essa volta à normalidade pré-pandêmica será muito lenta e gradual, de acordo
com especialistas ouvidos pelo Estadão.
O freio no otimismo generalizado veio da própria
Organização Mundial de Saúde (OMS). Na segunda-feira, o diretor-geral, Tedros
Adhanom Ghebreyesus, afirmou que a vacina pode não se tornar realidade, a
despeito de vários testes estarem sendo feitos em uma velocidade sem
precedentes e alguns já apresentarem até mesmo resultados promissores. São 164
substâncias candidatas em desenvolvimento; 25 em fase clínica, seis delas já no
último estágio. “Não existe bala de prata no momento e talvez nunca
exista”, alertou o diretor-geral. “Há uma preocupação de que talvez
não tenhamos uma vacina que funcione. Ou que a proteção oferecida possa durar
apenas alguns meses, nada mais.”
Para especialistas, o alerta faz todo o sentido,
sobretudo diante do relaxamento das medidas de isolamento social e uso de
máscaras, com a pandemia estacionada em um patamar muito alto, de
aproximadamente mil novos casos por dia no Brasil. “Alguns gestores já
estão achando que a vacina vai resolver tudo, que a vida vai voltar ao normal,
que não é preciso mais fazer distanciamento”, enumera Cristiana Toscano,
representante da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) em Goiás e membro
do Grupo Consultivo Estratégico de Especialistas em Imunização da OMS.
“Isso é muito preocupante porque o Sars-Cov2 claramente não vai
desaparecer rapidamente, ele vai ficar entre nós.”
Segundo a pesquisadora, o otimismo existe, mas
precisa ser realista. “É ótimo termos um número recorde de vacinas sendo
desenvolvidas, achamos que mais cedo ou mais tarde uma delas vai dar certo.
Mas, de fato, não temos nenhuma pronta, nem garantias, e não sabemos quando
teremos.”
Apesar de o novo coronavírus pertencer a uma
família viral já bastante conhecida e de ser um vírus estável (diferente do
HIV, por exemplo, que sofre muitas mutações), historicamente, apenas uma em
cada dez substâncias que chegam à fase final dos testes se transforma, de fato,
em vacina. “A fase 3 é, justamente, a mais complexa, é ela que avalia a
eficácia do produto, que diz se ele consegue prevenir ou não a infecção”,
explica o virologista Flávio Guimarães da Fonseca, pesquisador do Centro de
Tecnologia de Vacinas da UFMG. “A taxa de sucesso nesta fase clínica é de
10%, e é preciso lembrar que nunca se gerou uma nova vacina numa velocidade tão
alta; esse açodamento pode ter um preço.”
Proteção. A primeira questão a ser observada é o porcentual de proteção da
população. A vacina contra o sarampo, por exemplo, apresenta um dos mais altos,
de 98%. A vacina contra a dengue, desenvolvida em quatro anos, tem 70% e não é
oferecida gratuitamente. No caso de uma pandemia mundial, uma porcentagem ainda
mais baixa, de pelo menos 50%, poderia ser estrategicamente importante. Além
disso, os níveis de proteção para grupos demográficos distintos podem também
variar – idosos, por exemplo, podem ter respostas imunes menos robustas.
“Em vista de uma emergência sanitária, isso pode ser considerado. Mas
mesmo que seja de 80% para todo mundo, por exemplo, é bom lembrar que ainda vai
ter uma parcela significativa da população sem proteção”, aponta
Guimarães. “Ou seja, não vai ser possível voltar à normalidade.”
Outro problema é o período da proteção oferecido
pelo imunizante Se for de alguns meses, por exemplo, valeria a pena vacinar
todo mundo? Ou seria o caso de imunizar apenas profissionais de saúde que
trabalham na linha de frente do atendimento? A necessidade de várias doses da
vacina para um resultado mais eficaz é viável do ponto de vista logístico e
econômico? Uma vacina que só atenua os sintomas da doença é válida? São
questões importantes a serem respondidas. Por fim, as capacidades de produção e
distribuição de bilhões de doses de uma vacina no mais curto período de tempo
possível podem representar um gigantesco desafio. “Não há no mundo inteiro
nenhum laboratório privado ou público capaz de produzir 7 bilhões de
doses”, afirma Guimarães. Além disso, precisaria haver alguma garantia de
que o produto seria acessível aos mais pobres.
Para a distribuição e aplicação da vacina, outro
tipo de logística teria de ser montada. Envolveria um escalonamento da
população, de forma que os mais expostos e os mais vulneráveis recebessem a
imunização em primeiro lugar. “Isso tudo leva meses”, frisa Cristiana
Toscano. “E quando for disponibilizada, não vai ser de uma vez só que
todos estarão protegidos; é um processo paulatino.”
Flávio Guimarães concorda com a colega.
“Pode parecer uma previsão pessimista, mas é realista. E mesmo com uma
vacina eficaz já sendo aplicada, vamos continuar tendo de manter o
distanciamento e usar máscara por muito tempo ainda até o controle dessa
doença.”
Nem vacina garante volta à normalidade
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