39. 90. 102. 144. Não se trata de um código secreto ou
algoritmo. Os números indicam a quantidade de dias que quatro negócios se
mantiveram abertos após sua inauguração e antes do isolamento social, decretado
no Estado de São Paulo para desacelerar o avanço do novo coronavírus.
Apesar de pouco tempo com as portas abertas, as empresas carregam décadas de
experiência profissional dos empreendedores, anos de planejamento e ajustes no
modelo de negócios, cifras importantes para o investimento e muitos desejos de
mudança e sonhos, que não se medem pela matemática.
Fomos atrás da história de quatro empresas nascidas em São Paulo para ilustrar
os desafios de se empreender e estabelecer um negócio em meio a uma crise dessa
magnitude. Segundo a Fecomercio-SP, o varejo no Estado conta com mais de 310
mil empresas. Dessas, 116 mil estão proibidas de funcionar desde o decreto de
isolamento social. A perda média de receita diária ao longo desses 68 dias (de
24 de março a 31 de maio) atinge quase R$ 660 milhões, dos quais quase R$ 400
milhões correspondem as atividades com restrição de funcionamento. Na quarta-feira,
27, o governador do Estado João Doria apresentou um plano de retomada das
atividades com início em 1° de junho.
Ainda que os tempos estejam difíceis, o empreendedorismo é visto como um dos
principais sonhos de muitos brasileiros. Especialistas apontam que, entre
muitas mudanças a vir, a pandemia do coronavírus deixará como legado para o
setor boas oportunidades de negócios.
A seguir, conheça as histórias de quem já deu o primeiro passo e agora luta
para fazer seu empreendimento sobreviver: Fernando Fiori, Nelson Soares,
Marcelo Lima, Luciana Guidi e Larissa Mota
Fernando Fiori
DONO DE FRANQUIA DA LAVANDERIA 5ÀSEC
39 DIAS COM A FRANQUIA EM ATIVIDADE
Da geração em que trabalhar décadas em uma única empresa era sinônimo de
sucesso profissional, Fernando Fiori, de 53 anos, entrou para o mundo do
empreendedorismo oficialmente em 14 de fevereiro deste ano, como franqueado da
rede multinacional de lavanderias 5àsec.
A carreira sólida nas áreas de administração fiscal e tributária em
multinacionais com escritórios no Brasil soma 25 anos, com a primeira
contratação em 1988. Fiori trabalhou em apenas duas empresas, o que ele
considera fundamental para ter base e estrutura para encarar os desafios de
tomar conta do próprio negócio em meio a uma pandemia.
“Hoje, geralmente as pessoas empreendem com idades mínimas. E eu fiz isso
com experiência. Para minha sorte, eu sempre trabalhei em empresas de nome, nas
quais eu pude me desenvolver profissionalmente. E o objetivo sempre foi esse:
eu queria empreender, mas com bagagem. Isso foi muito bem planejado na minha
vida”, conta.
A jornada empreendedora de Fiori começou em 2019. A ideia inicial era abrir o
próprio negócio fora do Brasil e o país escolhido foi Portugal. O tema
segurança pública – a falta dela por aqui e a certeza dela por lá – foi o que
norteou a decisão. Porém, após uma imersão no país, Fiori constatou que o
Brasil era um mercado mais favorável.
“Me deparei com uma economia muito pequena e, com isso, poder aquisitivo
baixo da população. É um país turístico que tem as suas limitações e,
economicamente falando, fiquei com receio de investir”, explica.
No final de 2019, Fiori voltou para São Paulo para concretizar seus planos de
empreender. O setor de serviços, em específico lavanderias, foi o fruto da
experiência em Portugal. A escolha pelo franchising foi amparada também pela
sua trajetória. “Acredito na seriedade, nos valores e nas missões de uma
empresa Busquei então uma marca que já estava no mercado, sólida.”
O breve início das operações, de acordo com ele, foi tranquilo e sem surpresas.
“Estava muito feliz com a minha escolha, não tive nenhuma surpresa em
relação ao modelo de negócio”, conta. “Mas infelizmente tivemos esse
problema com o coronavírus, algo que jamais tínhamos passado em nosso
País.”
O isolamento social decretado em 21 de março pelo governador do Estado de São
Paulo, João Doria, incluiu as lavanderias como serviço essencial. Ou seja, elas
podem operar durante o período. Ao mesmo tempo, a 5àsec implementou o delivery
com frete gratuito em todas as franquias do Brasil, por sua conta. O conjunto
de ações proporcionou que Fiori não paralisasse as atividades.
Para ele, a palavra que descreve esse período é a reinvenção. “O que
vivemos é uma novidade para todo mundo. É preciso se reinventar, criar coisas
novas para os colaboradores e para os clientes, que são o coração do
negócio.”
Além de se reinventar, Fiori volta no tempo e acredita que sua experiência de
25 anos no mercado de trabalho o faz sair na frente como empreendedor por dois
motivos: a calma e a estratégia.
“No começo você se assusta. Mas uma coisa que a gente não pode ter quando
se é dono de um negócio é medo. O medo inibe qualquer tipo de decisão. A
experiência e a idade fazem com que você tenha serenidade para tomar as
decisões adequadas. Não dar um passo à frente antes de ficar em um patamar de
observação.”
O plano agora é crescer. Fiori não quer parar em uma única unidade.
Nelson Soares
SÓCIO DE STARTUP DO SETOR IMOBILIÁRIO
90 DIAS COM O APLICATIVO DISPONÍVEL NAS LOJAS VIRTUAIS
Retomar um projeto de startup disposto a deixar o emprego no mercado financeiro
para se dedicar apenas a ele. Foi exatamente esse movimento que Nelson Soares,
de 33 anos, fez entre agosto de 2019 e março deste ano.
O criador e CEO da Flatmatch, startup que atua no setor imobiliário, diz que já
ouviu de muita gente a expressão “que coragem!” – inclusive desta
repórter – quando conta que retomou a empresa criada em 2017 e passou a se
dedicar exclusivamente a ela após o carnaval, menos de 20 dias antes do decreto
de isolamento social no Estado.
A história de Soares no empreendedorismo é comum a muitos jovens que têm na
tecnologia a base de seus negócios. Em 2017, quando trabalhava no setor
imobiliário, ele percebeu que havia muitas oportunidades de atuação e inovação
no segmento de coliving. “Percebi isso pelos comportamentos que ouvia e
vivenciava, porque dividia apartamento com outras pessoas, era um
flatmate”, diz.
Com a ideia de criar um aplicativo que proporcionasse o match entre pessoas que
precisam encontrar outras pessoas para dividir apartamento, ou ainda fazer com
que essas pessoas encontrem o imóvel ideal para elas, surgiu a Flatmatch.
“A gente faz um duplo match. Primeiramente eu entendo o perfil das pessoas
e depois elas definem que tipo de imóvel buscam. A partir desses dois perfis de
informação, do flatmate e do imóvel, eu faço um cruzamento com o nosso
algoritmo”, completa.
Em 2017 ele começou a pesquisar o mercado, fazer entrevistas com potenciais
consumidores para construir a fase de validação do negócio. Como trabalhava em
uma equipe de inovação em uma grande imobiliária na época, convidou alguns
colegas de trabalho para fazerem parte do projeto.
“Infelizmente eles não tinham o perfil empreendedor que a gente precisa,
que é aquele cara perseverante, engajado, não somente desenvolvedor. Quando a
equipe não é 100% focada é muito difícil a startup sair do papel”, conta.
Aliado a isso, ele recebeu uma proposta de emprego. Foi assim que decidiu
pausar a Flatmatch por um tempo.
“Do zero”, como diz Soares, ele retomou o projeto no ano passado, em
agosto. Com sócio? Sim, seu flatmate, Mateus Gomes, de 21 anos. Com escritório?
Sim, o apartamento que dividem. “Agora eu sinto que a empresa está muito
mais preparada do que jamais esteve. É um recomeço”, conta. Há três meses
eles lançaram o aplicativo. “De lá pra cá aconteceram muitos testes,
muitas lições aprendidas.”
Para focar 100% na empresa, Soares e o sócio pediram demissão de seus empregos
dias antes do isolamento social que trouxe com ele a paralisação do setor
imobiliário. “Nesse contexto foi realmente necessário a adaptabilidade, a
perseverança e a estratégia, especialmente no nosso caso, uma startup em
estágio inicial.” Um divisor de despesas domésticas estava programado para
ser implementado dentro do aplicativo no futuro. A nova função se tornou o foco
do negócio para passar pela crise.
“Estamos correndo bastante para desenvolver o divisor porque ele é uma
função independente das outras, como fazer uma visita a um imóvel e ter um
contato com imobiliária. Qualquer pessoa que quer dividir as contas da casa tem
como acessar o aplicativo, é uma mudança estratégica.”
Duas imobiliárias já se tornaram parceiras da Flatmatch. “Momentos de
crise são sinônimo de surgimento de várias startups promissoras”, diz.
Marcelo Lima
DONO DE CERVEJARIA
102 DIAS DE CHOPE NAS TORNEIRAS DO TAMAREIRA BAR
Natal, Ano Novo e carnaval são consideradas datas difíceis para os negócios do
setor de serviços. Marcelo Lima, de 48 anos, passou por elas com êxito em São
José do Rio Preto, cidade do interior do Estado, mesmo com um negócio jovem.
Inaugurado em 12 de dezembro, a fábrica-bar de cervejas artesanais Tamareira
Bar manteve as 20 torneiras de chope ativas durante o período. Até que chegou o
decreto do isolamento social.
O setor de bares e restaurantes é um dos mais afetados nesse contexto. A saída
para manter uma receita mínima é o delivery. “No meu plano de negócio, que
fiz no início de 2019 com o Sebrae, a primeira coisa que eu fiz foi excluir
delivery. Por quê? Cerveja artesanal é mais cara do que a mainstream. Por isso,
o público é diferenciado. Investi em mobiliário, ar condicionado, decoração,
cozinha. Eu criei um lugar que entrega uma experiência. Não queria vender
cerveja em growler”, conta Lima.
Esse não foi o único investimento do empreendedor no Tamareira. Com uma
estrutura que comporta 155 pessoas, ele reformou o imóvel por quase um ano.
Construiu uma área de fabricação dos chopes da casa com capacidade de mil
litros por mês. Fez cursos de negócios em cerveja e sommelier. Investiu do
próprio bolso o dinheiro que conquistou em 22 anos de profissão como gerente de
América Latina de empresas multinacionais do setor hospitalar, especificamente
do segmento de próteses de alto custo (stent, por exemplo). “Depois de
morar 16 anos na capital paulista, minha esposa e eu decidimos voltar para o
interior. Empreender foi o caminho que escolhemos para voltar e termos renda na
cidade”, explica.
Investir em cervejas especiais também foi algo calculado. “Pensei em
lavanderia, padaria e comecei a ver em Rio Preto um movimento de cerveja
artesanal, ainda pequeno, mas muito promissor.”
Após paralisar as atividades, em maio Lima começou a fazer delivery apenas de
growlers via aplicativos de entrega ou retirada no local.
Dos 10 funcionários, quatro foram demitidos e 6 estão com o contrato suspenso
pela MP 936. O empreendedor opera o delivery sozinho.
“A minha maior frustração é que, pelo delivery, eu perco o meu
diferencial. Não tive tempo de ficar conhecido na cidade em tão pouco
tempo”, lamenta. Outro ponto importante é que, como a empresa não tem 12
meses de faturamento, ele não consegue se beneficiar de nenhuma linha de
crédito oferecida pelo governo. “Estou sozinho.”
Lima acredita que a retomada estipulará que não se trabalhe com a capacidade
máxima de público. “A vantagem é que tenho como manter a distância das
mesas sem perder tanto espaço.”
Luciana Guidi e Larissa Mota
SÓCIAS DA AMYI
144 DIAS PROMOVENDO EXPERIÊNCIAS EM PERFUMARIA
Duas mulheres que conhecem profundamente a indústria da beleza e sabem como ela
pode melhorar e agregar novos sentidos para o consumidor. Luciana Guidi e
Larissa Mota, ambas com 39 anos, se conheciam havia quase uma década quando se
reencontraram no mercado, em 2013. Larissa teve um experiência internacional no
segmento, trabalhando na Givaudan, em Nova York. Luciana liderou a área de
comunicação e marketing da Mary Kay. Com muitas críticas e ideias sobre a
perfumaria no Brasil, as duas se uniram para criar a Amyi, uma perfumaria
brasileira D2C (direct to consumer), no final de 2018.
“Unimos oportunidade e crítica sobre como essa indústria existe hoje.
Criamos uma nova forma de estimular o perfumista a trazer coisas novas. Ele tem
total liberdade criativa. Ao mesmo tempo, também buscamos proporcionar
liberdade para nosso consumidor, levando uma experiência olfativa para
ele”, explica Luciana.
Após 10 meses de formulação do conceito e elaboração do plano de negócio, o
produto foi lançado em novembro de 2019. Com uma equipe de três perfumistas,
que tiveram total liberdade criativa e de escolha de matérias-primas, a Amyi
tem um portfólio com 9 fragrâncias de 100 ml e o principal produto, a
Experiência Amyi. Baseada na neurolinguística, o objetivo é proporcionar ao
cliente compreensão de suas emoções despertadas pela fragrância. Ao comprar a
experiência, ele receberá em sua casa um kit com os 9 perfumes em frascos de 7
ml. Ele ainda recebe um acesso para a plataforma online da marca, na qual fará
um roteiro sensorial e educativo.
“Baseado em programação neurolinguística, perguntamos para a cliente o que
ela sente com aquele cheiro, o que ele desperta. É uma metodologia que
tangibiliza o subjetivo. Perguntamos qual seria a cor desse cheiro, a
consistência (se pudesse sentir com as mãos) e aprofundamos para saber se esse
cheiro desperta sensações ou sentimentos. O roteiro educativo é composto por
vídeos em que o próprio perfumista vai contar sobre as matérias-primas usadas,
como o perfume evolui ao longo das horas Após isso, ela experimenta as
fragrâncias por um tempo e escolhe qual é a preferida. E então encaminhamos o
frasco em 100 ml”, explica Luciana.
A empreendedora conta que, mês a mês, a empresa estava crescendo e fazendo os
ajustes necessários. “Até o dia 14 de março já tínhamos vendido 70% do que
vendemos no mês de fevereiro. Pensamos que viria o crescimento em ritmo mais
acelerado”. Porém, 10 dias depois o isolamento social foi decretado em
todo o Estado.
“A melhor forma para descrever esse momento seria uma luta de boxe: de repente
a gente se viu em um ringue e tomamos o baque, tudo estava cancelado, as
pessoas inseguras. Chegamos a encostar na corda e questionar se a gente
conseguiria passar por isso. Nossa venda depois do dia 14 de março zerou”,
confessa Luciana.
A estratégia foi recalcular a rota. “Demos um passo para trás, olhamos
todos os nossos números e projeções, custos variáveis, fixos, o que a gente
conseguia cortar, o que conseguia renegociar, para enxugar o negócio ao
máximo”, diz. O segundo passo foi não perder a alma da Amyi.
“Ficamos incomodadas com a enxurrada de pessoas querendo vender
desesperadamente e de forma agressiva. O momento pede mais sensibilidade.
Abrimos uma parte do roteiro sensorial de forma gratuita para as pessoas
fazerem a experiência com qualquer perfume que tinham em casa. Da estratégia
inicial, mantemos a promoção de Dia das Mães, que já estava no
calendário.”
Luciana conta que, para parte das experiências vendidas, elas fizeram a doação
de um litro de álcool em gel para asilos da cidade de São Paulo. Foram 165
litros doados para 14 instituições.
Em abril, a Amyi foi indicada como finalista do prêmio Art and Olfaction
Awards, que contempla a perfumaria independente. Em sete edições, é a primeira
vez que um perfume nacional é indicado.
Luciana acredita que a Amyi passou pelo teste de sobrevivência que viveu na
abertura da empresa. “Revisitamos por que nascemos. Foi a forma que
escolhemos para atravessar a crise.”
A crise nos primeiros meses de vida
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