Uma produtora de shows que trocou as estradas para passar a quarentena
com a equipe do escritório. Uma gerente de loja que hoje trabalha com as portas
fechadas e escreve bilhetes de carinho para os clientes. Um gestor de fábrica
de alimentos que precisou intensificar a liderança para engajar os
trabalhadores. Eles são exemplos de rotinas profissionais alteradas durante a
pandemia do novo coronavírus.
O isolamento social decretado pelo governo de São Paulo completa dois meses
neste domingo, 24. De lá para cá, muito do que era conhecido socialmente como
normal deu lugar a novos hábitos. Trabalhar de casa virou regra para muitos
profissionais, outros foram demitidos ou tiveram seus contratos suspensos.
Dependendo da carreira, o volume de trabalho aumentou ou compromissos foram
cancelados, e em ambos os casos o estresse e a ansiedade podem ter crescido.
‘Resumindo: o meu trabalho tem sido cancelado’
Isadora Silveira, 28 anos, produtora executiva de artistas
“Eu trabalho na F Simas, escritório de agenciamento de carreiras
artísticas. Sou produtora executiva, então, em um mundo sem pandemia, de
segunda a sexta eu faço a parte de escritório: recebo cotações de shows,
organizo logística, hospedagens, passagens, contratação de fornecedores.
A minha segunda frente de trabalho é ir para a estrada acompanhar os shows de
uma das artistas do escritório, a dupla Anavitória. No dia em que começaram os
primeiros cancelamentos de eventos, a gente estava voltando de shows no
Nordeste e íamos para os Estados Unidos para uma turnê, que foi cancelada.
Tivemos que cancelar tudo de abril e maio. Resumindo: o meu trabalho tem sido
cancelado (risos).
Eu fazia cerca de 20 viagens por mês e já não viajo mais. O dia a dia é
reorganizado para que a gente tente pensar quando esses shows adiados vão
acontecer. Ainda faço o trabalho de escritório, mas meu ritmo diminuiu uns 80%.
Tiro a manhã para ficar mais tranquila e me exercitar e deixo a tarde para
trabalhar. Como temos outros artistas agenciados, que fazem publicidade, eu
continuo trabalhando nesses contratos. Com os novos shows acontecendo em forma
de live, o processo de contratar é menor, mas similar. Eu fui de produzir 15
shows por mês para produzir uma live.
Durante a quarentena, deixei minha casa em São Paulo e vim para o interior do
Rio de Janeiro, com as pessoas com quem trabalho. Optamos por estar na mesma
casa para que a gente pudesse produzir e trabalhar. Neste tempo, as meninas do
Anavitória acabaram compondo uma música e decidimos gravar um vídeo na casa em
que estamos.
É como se o mundo tivesse desacelerado de uma forma muito louca. Conversando
com outros produtores, a gente tem falado muito de que nunca tivemos tanto
tempo. Sempre emendamos artistas, projetos, turnês. Eu trabalhava de segunda a
segunda, nunca tive hora. Então tenho aproveitado esse tempo para terminar
cursos que eu queria fazer e não conseguia.
Eu tenho sentido que todo mundo dessa área, desde produtores até o pessoal que
trabalha em casas de shows, têm se preparado para o novo, ainda que a gente não
saiba como ele vai ser. Não sabemos se serão shows em drive in ou com
capacidade reduzida das casas, se vamos poder viajar, se os shows terão que ser
apenas nas cidades dos artistas ou se as lives vão durar mais tempo.
Mas eu penso no medo que as pessoas vão ter de se aglomerar depois de ficar
tanto tempo em casa. Acho que vai ser um passo muito difícil e a nossa área vai
ser a última a voltar. O entretenimento é considerado supérfluo para algumas
pessoas e isso acaba não sendo prioridade nos gastos. Mas não posso desanimar.
As pessoas na minha área costumam estar preparadas para qualquer coisa.”
‘Na prática, meu serviço precisa de computador e cadeira’
Letícia Nogueira, 30 anos, advogada
“Eu estou há mais de 50 dias sem pisar na rua para absolutamente nada. A
transição para o home office em si não foi difícil porque o meu dia já
consistia em ficar sentada na frente de um computador, mas o volume de trabalho
aumentou desde o início da pandemia. Houve algumas demissões no escritório e as
equipes ficaram reduzidas.
Também passei a fazer audiências. Embora eu trabalhe em São Paulo, a maioria
dos clientes do escritório tem demandas em nível nacional, então os processos
correm em outros Estados.
Antes da quarentena, eu contratava correspondentes nos outros Estados para
fazer os compromissos presenciais. Eu não tinha demanda externa na minha
rotina, mas como muitos locais determinaram a realização de audiências por
videoconferência durante a pandemia, eu passei a fazê-las diretamente da minha casa.
Cada Estado faz de um jeito, alguns pelo Zoom, outros pelo WhatsApp. Costumam
ser audiências rápidas, de conciliação, para dizer se há acordo entre a empresa
e o cliente ou não. Nesses dias, eu coloco uma blusa social, passo maquiagem,
mas continuo de calça de pijama e meia colorida por baixo.
Nós também tivemos a redução da jornada e do salário, então agora eu tenho um
dia de folga na semana, o que acaba fazendo com que eu tenha que redistribuir o
que faria naquele dia. São nessas folgas que faço as tarefas domésticas. Eu
moro em uma casa grande, com dois gatos, então estou sempre fazendo faxina.
Antes da pandemia, já se via cada vez mais escritórios com trabalho remoto,
tanto pela eficiência quanto pela redução de custos indiretos. Essa realidade vai
se transformar cada vez mais em regra. O escritório físico é mais por tradição,
mas, na prática, o meu serviço não precisa de uma estrutura enorme, mas de um
computador e uma cadeira confortável.”
‘Tenho certeza de que reunião online veio para ficar’
Alberto Lazzarini, 36 anos, gerente de fabricação na Nestlé
“Eu trabalho há 18 anos na indústria de alimentação, 10 deles na Nestlé. A
minha rotina consiste em gerenciar as linhas de produção. Trabalho com cerca de
400 pessoas abaixo de mim, então gerencio os processos, as pessoas e os
projetos.
Essa rotina não mudou com a pandemia. Por ser do setor de alimentos e bebidas,
considerado serviço essencial, a fábrica continua operando com 100% de
capacidade. O que mudou foi o distanciamento.
Quando eu chego à empresa, a primeira coisa que faço é ter a apuração dos dados
de produção das últimas 24 horas. Faço análise das entregas, vejo se estamos
cumprindo os indicadores de produção. Muitas vezes, precisamos atuar nessas
questões, então temos reuniões logo pela manhã. É aí que aparecem as primeiras
mudanças.
Nós fazíamos as reuniões de forma presencial, eu tinha uma locomoção maior
dentro da fábrica para isso. Agora, são feitas por aplicativos, como Skype e
Microsoft Teams, e elas são muito mais dinâmicas. Tenho certeza de que isso
veio para ficar.
Como gerente, preciso estar em contato com as pessoas, cumprimentar, acompanhar
os turnos. Essa interação, a proximidade, os cumprimentos eu tive que mudar.
Mas, como gestor, eu preciso me fazer mais presente também. Tive que
intensificar a liderança, trazer o foco e a responsabilidade. Então aumentei as
minhas caminhadas pela fábrica para que as pessoas se sintam seguras para terem
informações e dar suas opiniões neste momento. É importante que os
colaboradores confiem em mim.
Neste período, também faz parte do trabalho buscar benchmarking para saber o
que fazer. Alteramos o layout do refeitório, reduzimos as cadeiras e mesas,
aumentamos os horários de refeição. Tivemos que incorporar novos EPIs, como as
máscaras e novos comportamentos. Junto com as outras equipes, também tivemos
que pensar em uma nova disposição da linha de produção. Cada função já tem seus
postos de trabalho desenhados, mas tivemos que ampliar o distanciamento para
manter a segurança das pessoas.
A pandemia trouxe um momento de reflexão para podermos mudar coisas na nossa
rotina e acelerarmos outras para as quais teríamos mais prazo em uma curva mais
suavizada.”
‘Estar em casa pode ser armadilha se não houver atenção’
Bruna Silva, 30 anos, consultora de sustentabilidade na 3 É Par
“Eu sou cofundadora da empresa e atuo como consultora de sustentabilidade
para organizações sociais e públicas. Realizo meu trabalho dentro dessas
empresas, além de treinamentos, palestras e cursos pelo Brasil.
Antes da pandemia, minha rotina era de reuniões presenciais e viagens muito
frequentes. Eu praticamente não tinha um lugar fixo de trabalho, pois as
reuniões costumavam acontecer diretamente nos clientes ou lugares onde os
projetos estavam sendo realizados. Também gostava de frequentar algumas
cafeterias e coworkings para trabalhar. Esse dinamismo é uma das coisas de que
mais gostava.
No começo de março, todas as minhas viagens do mês foram canceladas. Fui de
viajar cerca de nove dias por mês para nada. Eu tinha duas palestras agendadas
e o início de um projeto, ambos fora do Estado. Desde então, esses projetos
estão congelados, sem data prevista para serem retomados.
Nós tivemos um grande impacto imediato com o cancelamento de alguns trabalhos e
o congelamento de projetos que demandavam presença física. A renda diminuiu.
Para esses trabalhos, não houve o que contornar! Não foi possível adotar outra
alternativa até o momento.
Hoje, eu acordo às 7h, medito no primeiro horário do dia, antes de iniciar
minhas atividades. Dedico dois grandes blocos de horário para o trabalho,
durante a manhã e à tarde. À noite, faço as aulas do mestrado.
As reuniões internas passaram a ser online e mais frequentes. Antes eu fazia
três acompanhamentos presenciais com clientes por semana, agora faço à
distância. Eu realizo o meu trabalho o tempo todo da minha casa e vejo que
trabalho muito mais com essa nova rotina. Estar em casa pode ser uma armadilha
se não houver atenção, organização e tolerância”
‘Vamos criando novos hábitos e nos envolvendo mais’
Alessandra Sandonato, 46 anos, gerente de Loja Imaginarium em shopping
“Antes da pandemia, eu tinha uma rotina normal de gerente de loja de
shopping. Logo cedo já me informava sobre a abertura da loja, verificava a
limpeza, os produtos expostos, conferia o estoque, acompanhava os índices de
meta e ajudava a atender os clientes. O meu horário habitual era de 12h às 20h,
embora acabasse ficando um pouco mais.
Em março, começamos a notar que o movimento estava muito estranho nos
corredores do shopping, até que eles avisaram que iriam fechar.
Já em casa, eu criei uma rotina de home office para os funcionários (são cinco
vendedores e um estoquista). Como incentivar o time a não perder a atividade
mental? Criei uma rotina de indicar filmes, mas achávamos que tudo ia voltar ao
normal em uma semana. Não tínhamos dimensão do que seria, já tenho 17 anos de
varejo e nunca vi nada assim.
Com o passar do tempo, passei a ficar mais preocupada e olhando por uma visão
prolongada, comecei a pensar que quando as coisas voltarem a funcionar as
pessoas vão ficar com medo de se relacionar, de aparecer. A empresa já tinha o
omnichannel, então me ofereci para ajudar a fazer caixa para a loja. A maioria
dos funcionários teve os contratos suspensos já que as lojas estão fechadas.
Me juntei com uma gerente de outra unidade e agora trabalhamos nós duas com a
porta fechada. Ela passa na minha casa, me pega, as duas de máscaras, luvas e
álcool em gel na mão e vamos para a loja em que ela trabalha. Deixamos um palmo
da porta aberta e o ventilador ligado para circular o ar.
O cliente faz a compra pelo site da loja ou pelas redes sociais – que caem
direto no meu WhatsApp -, nós pegamos os produtos no estoque, embalamos,
chamamos o motoboy e ele faz a entrega ou a pessoa vem buscar. Enquanto isso, a
gente fomenta o canal digital nas redes sociais. Vamos criando novos hábitos e
nos envolvendo mais emocionalmente com os clientes.
Como a relação está mais próxima, escrevemos bilhetes e mandamos chocolates com
as compras, damos um carinho a mais. Temos uma plataforma de telemarketing
digital, com a lista de clientes da loja, conseguimos ver o que cada cliente
comprou e, com isso, vamos mantendo contato com eles.
Agora, como consigo monitorar os pedidos de casa, eu fico menos horas na loja.
Costumo chegar às 12h e sair às 16h. Claro que o nível de vendas também caiu,
não tem como não cair. Considerando que agora eu cuido de cinco lojas, a gente
tem uma média de 20 pedidos por dia, a não ser em datas comemorativas, como foi
o Dia das Mães.”
A rotina de cinco profissionais em dois meses de isolamento social
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