Nas palavras do presidente Jair Bolsonaro, a doença
trazida pelo coronavírus não passaria de uma “gripezinha”. Mas, como
já dava para imaginar na época de sua troça, há cinco meses, o estrago causado
pela pandemia no País não tem qualquer semelhança com o de um surto de gripe
comum, tratada com vitamina C e cama – ou cloroquina, como prefere Bolsonaro.
Além das 100 mil vidas levadas pelo vírus e dos
mais de 2 milhões de brasileiros infectados até agora, incluindo o próprio
presidente, o volume de recursos usado para combater a pandemia e aliviar seus
efeitos econômicos e sociais teve um efeito devastador nas finanças públicas.
Não por acaso, a medida que abriu os cofres públicos para o governo enfrentar a
covid, articulada pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia, foi batizada de
“orçamento de guerra”.
Segundo um levantamento realizado pelo Estadão,
com base em estimativas do governo e dos bancos, a pandemia deverá custar só em
2020 cerca de R$ 700 bilhões, o equivalente a quase 10% do PIB (Produto Interno
Bruto) e a R$ 3,3 mil para cada brasileiro. Daria para pagar o Bolsa Família,
já considerando o aumento de beneficiários ocorrido durante a crise, por 21
anos. Do ponto de vista das contas públicas, isso representa quase seis vezes o
déficit previsto para este ano antes da pandemia, de R$ 124,1 bilhões (veja o
quadro ao lado).
“É um custo bem alto”, diz o
secretário do Tesouro, Bruno Funchal, que assumiu o cargo no fim de julho, com
a fatura do coronavírus já emitida e o desafio de administrar o problema. “Em
última instância, é uma conta que será paga por todos nós e pelas gerações
futuras.”
Crise global. Se as previsões se confirmarem, a dívida pública
bruta deverá subir 22,4 pontos porcentuais neste ano, passando de 75,8% do PIB
no fim de 2019 para 98,2% do PIB (como já anunciado pelo governo), um recorde
histórico. É um salto sete vezes maior que o registrado em 2009, no auge da
crise financeira global, e igual ao dos últimos seis anos somados, de 2013 a
2019, um dos períodos mais conturbados para as contas públicas e a economia
nacional.
Como aconteceu na crise global, que acabou por
jogar o País na pior recessão de todos os tempos, ainda que com anos de atraso,
em consequência da gastança promovida para tentar aliviar seus efeitos aqui, o
estrago agora deverá ir muito além de 2020 – e em escala potencializada.
“A gente não pode nem pensar em ações que fragilizem a nossa situação
fiscal”, afirma Funchal. “No futuro pós-pandemia, a nossa trajetória
de consolidação fiscal tem de ser igual à da pré-pandemia.”
De acordo com as projeções do Tesouro, a dívida
bruta do setor público deverá se manter relativamente estável nos próximos três
anos e atingir seu pico, de 98,6% do PIB, em 2024. Só depois começará a cair,
chegando a 92,2% do PIB em 2029. Alguns analistas traçam cenários ainda mais
pessimistas, reforçando a percepção do próprio Funchal de que a situação poderá
sair do controle se os gastos temporários da pandemia se transformarem em
permanentes, como defendem muitos políticos e economistas por aí.
Austeridade. Um estudo realizado pela Instituição Fiscal
Independente (IFI), ligada ao Senado, aponta que a dívida bruta, que deveria
parar de crescer neste ano ou no próximo, segundo as previsões feitas antes da
pandemia, poderá alcançar 100% do PIB já em 2022. Depois, seguirá em alta até
2030, quando chegará a 117,6% do PIB, e só então começara a diminuir.
“Se antes da crise a gente já tinha o
desafio de ajustar as contas e já era difícil fazer isso, depois da pandemia
vai ficar ainda mais complicado, porque a União, os Estados e os municípios
estarão numa situação fiscal ainda pior do que antes”, diz o economista
Felipe Salto, diretor executivo da IFI. “Muitas pessoas estão comemorando,
dizendo que agora nós superamos essa questão de austeridade fiscal, mas elas
estão equivocadas, porque os problemas estruturais do País vão ser os mesmos de
antes.”
Neste ano, o custo da pandemia ainda poderá ser
agravado se as empresas não quitarem os tributos que tiveram a data de
pagamento adiada – um valor calculado em R$ 100 bilhões pelo Tesouro. Como os
atrasados terão de ser pagos junto com os do quarto trimestre, os técnicos do
Ministério da Economia temem que as empresas não tenham fôlego para fazer todos
os recolhimentos.
Uma nova extensão do auxílio emergencial para os
trabalhadores informais, que representa o maior custo da pandemia, também
poderá consumir mais R$ 200 bilhões, se o benefício for esticado até dezembro,
como se discute hoje, elevando o custo da pandemia a quase R$ 1 trilhão.
“Empoçamento”. Há, porém, alguns fatores ainda não
contabilizados que podem contribuir para que o País chegue ao fim do ano com um
resultado um pouco melhor que o das projeções divulgadas até agora.
O gasto com juros da dívida pública, por
exemplo, poderá ser bem menor do que indicam as estimativas oficiais e até do
que o previsto antes da pandemia, mesmo com a queda do PIB, estimada em 4,7%
pelo governo. Como as projeções do ministério estão relativamente defasadas,
elas não espelham em toda a extensão a queda da taxa básica (Selic), para 2% ao
ano, adotada na correção de cerca de 60% da dívida pública.
Hoje, o Tesouro ainda prevê um gasto com juros
de R$ 350 bilhões em 2020 (4,8% do PIB), enquanto a mediana das estimativas dos
bancos, segundo o Relatório Focus, já aponta para uma despesa de cerca de R$
290 bilhões (4% do PIB) – R$ 60 bilhões a menos que as projeções oficiais.
O governo também poderá ter uma surpresa
positiva se parte dos R$ 35,9 bilhões repassados ao Fundo Garantidor de Credito
(FGC) para viabilizar a liberação de financiamentos para micros, pequenas e
médias empresas pelos bancos, voltar aos cofres públicos. Como o governo nem
conta com esse dinheiro, tudo que entrar no caixa vai contribuir para aliviar o
custo da pandemia
Outro fator que pode amenizar a conta é a sobra
de recursos do orçamento original de 2020, aprovado antes da covid – um
fenômeno chamado pelos economistas de “empoçamento”. Como muitos
ministérios se concentraram em ações ligadas à pandemia, não tocaram vários
projetos programados para este ano. No primeiro semestre, segundo Funchal, o
“empoçamento” desses recursos atingiu valor recorde de R$ 31 bilhões.
Até no chamado “orçamento de guerra”
isso está ocorrendo. Da verba de R$ 510 bilhões liberados pelo governo, apenas
R$ 273,8 bilhões (53,7%) haviam sido gastos até agora, segundo o Painel do
Orçamento Federal. Outros R$ 123,3 bilhões (24,2%) estão comprometidos com
pagamentos, mas ainda não saíram do caixa. Mesmo que parte dos R$ 110 bilhões
restantes seja usada até dezembro, ainda poderá haver uma boa sobra para
reforçar o caixa
Somando tudo, pode ser que a conta da pandemia
em 2020 acabe sendo um pouco menor que o previsto. Se isso acontecer, será um
alívio bem-vindo para as finanças públicas do País.
Conta da pandemia chega a R$ 700 bilhões
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