Quem
vê os principais executivos da Netflix posando em fotos ao lado de estrelas
como Robert De Niro, Al Pacino e Scarlett Johansson não imagina que, em 2001, a
preocupação de Reed Hastings, fundador e copresidente da empresa, era outra:
decidir quais dos então 120 empregados seriam demitidos. O corte seria
profundo, de um terço da equipe. Mas foi justamente aí que nasceu um dos
pilares da cultura da companhia: o “Keeper Test”, com o qual desde
então a empresa decide quem permanece e deixa a empresa. Sem grandes avisos.
No livro que conta a história da ascensão da
Netflix – hoje referência em streaming de conteúdo no mundo todo, à frente de
gigantes como Disney, Amazon e WarnerMedia -, Hastings lembra que, nas crises,
aprendeu que uma equipe reduzida de trabalhadores excepcionais pode ser mais
produtiva do que um time de gente medíocre ou “adequada”. Até antes
disso, quando ainda era dono de uma empresa de software, nos anos 1990, viu que
controles administrativos são um empecilho à inovação. É daí que surge o título
da obra sobre a empresa, que sai no Brasil pela Editora Intrínseca: A regra é
não ter regras.
Foi livrando-se de distrações – como criar uma
norma sobre se os funcionários devem alugar um carro ou pegar um táxi, como se
eles não tivessem capacidade de decidir conforme o contexto – que a Netflix
conseguiu manter a equipe atenta aos sinais que o mercado lhe dava.
Ao contrário da Kodak, não tapou os olhos em
relação à migrando da mídia física para a digital. “É por causa de nossa
cultura que fomos tão bem-sucedidos. O foco na liberdade de decisão e na
criatividade continua muito similar ao que era no início”, disse Hastings,
em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo.
Blockbuster vive?
No capítulo de abertura de A regra é não ter
regras, no entanto, o leitor entende que, por pouco, o império chamado Netflix
poderia ter hoje outro nome, também muito conhecido: Blockbuster Sim, a finada
cadeia de videolocadoras. Há duas décadas, essa empresa tinha um domínio de
mercado em entretenimento em casa comparável ao da Netflix hoje. Foi com uma
pastinha embaixo da mão que Hastings foi à sede da Blockbuster tentar convencer
a companhia a comprar sua empresinha de envio de DVDs pelo correio por US$ 50
milhões (ele devia US$ 57 milhões à época). Levou um não. Corte para o
presente: a Blockbuster faliu e a Netflix vale cerca de US$ 211 bilhões na
bolsa.
E o que fez a diferença, ao menos até agora?
Segundo o fundador, foi a equipe. Por isso, é preciso eliminar as maçãs podres:
cerca de 8% da equipe da companhia é renovada todos os anos, por iniciativa da
empresa. Nessa estatística, conforme relatam no livro Hastings e Erin Meyer, da
Insead Business School, estão algumas das pessoas que ajudaram a fincar no chão
os pilares da Netflix. Entre os que, em algum momento, disseram adeus ao
negócio está Patty McCord – executiva que, em 2001, elaborou junto com Hastings
o Keeper Test. Virou vítima da própria criação. (O empresário garante que eles
continuam amigos.)
Ninguém a salvo
O teste de separar quem fica e quem vai foi
elaborado a partir de uma pergunta muito simples: “Se determinada pessoa
da sua equipe pedisse demissão, você tentaria fazê-la mudar de ideia ou
aceitaria a saída, talvez com um pouquinho de alívio?” Se o segundo caso
for verdadeiro, é hora de a pessoa ir. Não ao fim do trimestre, não na próxima
reunião de avaliação. Imediatamente Conforme A regra é não ter regras
esclarece, a razão para essa “limpa” geralmente é técnica, mas
questões de relacionamento também podem ter influência. E aos perdulários, um
aviso: eventualmente, contas pagas pela empresa e não explicadas podem ser razão
de pena máxima.
Reed Hastings avisa que o Keeper Test vale para
todos, em absoluto. “Eu sempre pergunto aos meus chefes (do conselho de
administração) se está na hora de eu ir”, disse.
Ainda não chegou a tanto, mas já passou bem
perto. Na semana passada, após 18 anos, a Netflix demitiu a executiva Cindy
Holland, que trabalha na empresa desde a época dos DVDs pelo correio.
Para o posto máximo da área de conteúdo, a
companhia promoveu outra executiva, Bela Bajaria, com bem menos tempo de
companhia (chegou em 2016). A escolha surpreendeu todo o mercado de conteúdo,
mas confirmou as palavras do fundador: ninguém está a salvo.
Apesar de funcionar para a Netflix, a estratégia
de pagar altos salários e exigir grande produtividade, à custa de uma demissão
sem muita explicação, é a melhor estratégia de recursos humanos? Para o
sócio-fundador da companhia de recursos humanos Exec, Carlos Eduardo Altona, a
resposta é sim e, ao mesmo tempo, não. “A Ambev, durante muito tempo,
tinha a política de trocar 10% da equipe todos os anos e exigia alta
produtividade. Durante muito tempo, a companhia atraiu talentos dessa
forma”, lembra. “Mas, mais recentemente, começou um movimento de
mudança. É preciso que as culturas estejam abertas a se adaptar.”
Para Altona, no cenário pós-pandemia, uma
cultura mais agressiva não é exatamente tendência. Pelo contrário: “Hoje,
fala-se mais em uma liderança mais humanizada, acolhedora”, diz o
executivo. Por outro lado, o dado de 8% de substituições anual exibido da
Netflix é saudável: “Tem aí um elemento de não adiar decisões, de não
ficar refém de um profissional que muitas vezes atrapalha o todo. É algo que
ocorre muito em grandes organizações.”
Moral da história?
Se ainda parece difícil de entender como um
negócio com tantos elementos diferentes prosperou tanto, Hastings admite que é
assim mesmo. E ele não espera que os princípios da Netflix se tornem um modelo
a ser seguido cegamente: “O que estamos tentando fazer é uma descrição
honesta do que fazemos, porque nosso projeto é bem diferente. Mas cada um pode
decidir o quanto pode aplicar à sua realidade.”
Do que é feita a Netflix, que em 20 anos foi de negócio em crise a gigante global
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