Em meio à pandemia, famílias adiam desmame e desfralde

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Desmamar e desfraldar a filha de 2 anos e 10 meses em meio à pandemia do novo coronavírus e ao isolamento social é algo que preocupa a corretora de seguros Kemelly Oliveira, de 41 anos. Desgastada física e emocionalmente com a situação, ela sente que o momento não é adequado para realizar os processos. Em uma pesquisa realizada pelo site de maternidade Trocando Fraldas, a pedido do Estadão, mais da metade das famílias afirmou que está adiando desmame, desfralde e o adeus à chupeta.

Os questionários sobre os temas foram respondidos por cerca de 2 mil pessoas, que se dividiram nos três temas. A faixa etária média das crianças que mais estão tendo os processos adiados é a dos 2 anos. Em relação ao desmame, 53% das pessoas afirmaram que adiaram o processo. Sobre adiar o desfralde e a retirada da chupeta, foram 54% e 59%, respectivamente.

“A gente percebeu que os pais têm medo de fazer uma mudança. Tem muita criança que ia para a creche e a mãe pensava que tirou do convívio dos amigos, da rotina e, se tirar o peito ou a chupeta, vai ser um estresse grande”, avalia Patricia Amorim, fundadora do site. “Essa situação mudou a rotina não só das crianças, mas das mães que ficam estressadas por trabalhar em casa e de alguns pais que perderam o emprego.”

Kemelly pretendia fazer o desmame da filha Cecília, mas mudou de ideia. O desfralde tinha sido iniciado na escola, não avançou e as tentativas em casa desaceleraram. “Minha dificuldade é o controle emocional. Além de estar muito desgastada e cansada, fico imaginando a casa suja de xixi e cocô. Sem falar em ficar correndo atrás dela para tratar deste assunto.”

Ela já trabalhava em home office, mas o trabalho mudou e as tarefas aumentaram durante o período. “Como a criança requer atenção, pede para brincar, para mamar, tem a alimentação, preciso ficar parando. É muito diferente. Tenho minha enteada de 16 anos também. Ela ia para a escola, inglês, curso e mal ficava em casa. Agora, com todos em casa, tudo aumentou. Mais ida ao fogão, mais mercado, mais sujeira. E o trabalho no meu ramo aumentou também por causa da pandemia, porque teve muita procura por convênio médico.” Por isso, o aleitamento materno foi mantido.

A inspetora escolar Suyane Ferreira, de 28 anos, desfraldou o filho Miquéias Augusto, de 1 ano e 11 meses, há três meses e diz que não teve dificuldades. Mas o desmame, que tinha sido iniciado, vai ficar para outro momento. “Estava iniciando o desmame antes da pandemia, porque ele sentia muita falta do peito quando ficava com outra pessoa. Com a pandemia, ficou mais difícil. Quando estava trabalhando longe, ele só mamava para dormir. Agora, com esse convívio, porque estou trabalhando em casa e as escolas não estão funcionando, ele fica querendo mamar a toda hora.”

Ela sente que o filho está mais apegado e mudou a rotina para poder dar mais atenção para a criança. “Trabalho em uma escola para adultos e participo de reuniões. É complicado, porque ele quer ficar no colo. Às vezes, tenho de adiar as reuniões ou trocar os dias. Tem dias que vou dormir às 3h30 para deixar tudo adiantado. Como ele dorme cedo, acorda cedo e, quando está acordado, eu me dedico totalmente a ele.”

Tempo com as crianças

Pediatra do Departamento de Aleitamento Materno da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), Moises Chencinski diz que a pandemia também pode ter mudado o olhar das famílias sobre esses processos e, com a observação dos filhos e a possibilidade de estar perto deles, a decisão de realizar o desmame e o desfralde com mais calma e adiar o adeus à chupeta acaba sendo tomada. “Como estamos em casa com mais frequência, estamos acompanhando mais de perto o desenvolvimento da criança. Estamos olhando e aprendendo a respeitar o seu tempo de desenvolvimento e o seu momento de prontidão. O que se tinha pressa para fazer antes, não se tem agora.”

Para exemplificar, Chencinski cita os dados do Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil (Enani), do Ministério da Saúde. “Até os 4 meses, temos cerca de 60% dos bebês em aleitamento materno. Até os 6 meses, cai para 45%. Isso porque as mães voltam ao trabalho, muitas trabalham em serviços informais. O que as estatísticas mostram é que temos 15% de abandono. Se a criança está em casa e a mãe precisa sair, isso favorece o desmame. Se estão trabalhando em casa, elas amamentam “

Para a amamentação, o pediatra diz que a recomendação é manter o aleitamento materno até os 2 anos ou mais e que a orientação não mudou por causa da pandemia. A Organização Mundial da Saúde (OMS) informou em documento científico publicado em junho que mesmo mães infectadas ou com suspeita de infecção devem amamentar, tendo em vista que os benefícios da amamentação superam os possíveis riscos de infecção pelo vírus. Até o momento, segundo a entidade, a transmissão pelo leite materno ainda não foi detectada.

Sobre a chupeta, ele é direto. “A chupeta não precisa colocar e, se a criança usar, deve ser tirada o quanto antes, porque causa problemas de oclusão dental, respiratórios e mastigatórios.”

Chencinski orienta que, no caso do desfralde, o processo não ocorre de maneira imediata e a criança precisa alcançar habilidades para que consiga deixar de usar fraldas. “É necessário que a criança passe por três fases: reconhecer que sujou a fralda, saber que está fazendo, segurar e querer saber o que deve fazer. Isso acontece por volta dos 2, 3 anos. O desfralde precoce pode resultar em prisão de ventre e, no caso das meninas, infecção urinária de repetição.”

Mãe de Pedro, de 3 anos, a engenheira de alimentos Fernanda Veiga, de 33, está no grupo de pais que desfraldaram durante a pandemia. “Quando ele estava perto dos 2 anos, começou a pressão por parte de familiares e amigos para eu conduzir o desfralde. Mas eu estava muito tranquila e convicta de esperar ele mesmo sair das fraldas. E foi com 3 anos e 3 meses. Foi muito tranquilo, sem briga, sem quadro de recompensa, sem pressão. Ele simplesmente amadureceu, tanto fisiologicamente quanto psicologicamente. Fiquei muito feliz por respeitar o tempo dele e com a consciência tranquila de não ter causado nenhum trauma “

‘Estresse tóxico’

Professora associada sênior do Departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), Maria Beatriz Linhares diz que o período em que esses processos costumam ocorrer nas crianças, até por volta dos 3 anos, é o momento da vida em que elas têm relação ainda de grande dependência dos pais.

Segundo ela, é quando se forma a base segura para o desenvolvimento, responsável pela criação de vínculo afetivo e segurança para conviver com pessoas que não são familiares.

Diante da pandemia, os pais estão vivendo uma situação de estresse e as crianças acabam sendo afetadas. “No nosso momento atual, o nível de estresse está alto. É um momento de estresse tóxico, ansiedade, medo, falta de planejamento. O ambiente de trabalho se misturou com o de casa. As mães e pais estão tendo de lidar com um ambiente mais caótico, cujo desafio está virando uma ameaça para o desenvolvimento. A criança percebe que alguma coisa mudou e há troca de ansiedade entre os pais e as crianças”, diz Maria Beatriz, que também é consultora da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal.

Quando isso ocorre, os pais podem detectar alterações no comportamento, mudanças na alimentação, no sono e nas aprendizagens. Mas ela pondera que não é possível prolongar a amamentação, o uso da fralda e, principalmente, a chupeta por muito tempo, mas que a retirada deve ser feita apenas se todos estiverem aptos emocionalmente para isso.

“É preciso ter muita clareza de como está o desenvolvimento da criança e se os pais estão inseguros, eles devem pensar que, em momento de estresse, não se toma decisão drástica. Se está muito sobrecarregado e não vai ter paciência, tem de saber que é um processo, não vai ser do dia para a noite. Se fizer essa aprendizagem permeada por estresse, agressividade e punição, vai ser um problema”, ressalta a consultora.

Ela recomenda ainda que os pais utilizem o período de tanta proximidade, criado pela quarentena do novo coronavírus, para criar memórias afetivas positivas. “Não podemos ficar com a memória só do estresse”, diz.

Maria sugere pegar fotos antigas, conversar com a criança, fazer um livro de histórias. Dedicar um horário para o seu filho para oferecer uma dose de atenção e afeto. “Os pais têm de aproveitar isso.”

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