Depois de mais de 100 dias de isolamento, medidas
de reabertura do comércio estão estimulando as pessoas a deixarem suas casas.
Para quem tem cumprido a quarentena com rigor, e vai colocar os pés na rua após
muito tempo, a primeira impressão é de que São Paulo transformou-se em uma
cidade cheia de placas de “aluga-se” e de gente usando máscaras no
queixo*.
Decerto que três meses foram suficientes para
mudanças drásticas na São Paulo que um dia a gente jurou que conhecia tão bem.
Mas que cidade é essa que nos aguarda do lado de fora? Vamos fazer essa viagem
juntos… Antes, se for mesmo sair de casa, não se esqueça da máscara. Quase
ninguém esquece.
O problema é o modo de usar. Você não vai andar
200 metros sem encontrar alguém com ela no queixo. “Abaixo um pouquinho
para poder respirar”, defende-se o técnico em informática Luciano Pereira,
26 anos. Você também vai reparar que no térreo de prédios comerciais, as cenas
de funcionários fumando com as respectivas máscaras no queixo já são um
clássico do chamado novo normal.
Não existe nenhuma desculpa razoável para andar
sem proteção. Você vai perceber que lojas populares (do tipo que vende capinhas
para celular) e bancas de jornal estão comercializando máscaras e álcool em
gel. Aliás, esses são os produtos que você vai encontrar com mais destaque em
pequenos estabelecimentos e na mão de ambulantes. “Eu trabalhava
registrado. Perdi o emprego por causa da covid. Agora, vivo de vender máscara
na rua. Faço duas por dez reais”, contou Ezequiel David Frei da Silva, 20
anos.
Ao seguir com a nossa “reentrada” na
atmosfera da cidade, é possível notar que as placas de “aluga-se” se
impõem à paisagem. Grandes centros comerciais e áreas residenciais padecem do
mesmo mal: lojas, restaurantes e bares que não resistiram à pandemia. Ao subir
uma rua como a Teodoro Sampaio, em Pinheiros, na zona oeste, você poderá
admirar portas de ferro cerradas (e quase sempre pichadas) que se repetem em
sequência ou de forma intercalada. Trata-se de cenário de que só pode ser
descrito como: “loja aberta, fechada, fechada, aberta, aberta, fechada,
fechada…””
“Essa semana descobri que o restaurante
perto de casa fechou e que o café ao lado do trabalho também não reabre. É estranho
porque até ‘ontem’ pareciam funcionar direitinho”, diz a secretária Renata
Malezzi, 38 anos. O ‘até ontem’ muda de estabelecimento para estabelecimento.
No restaurante Itamarati, o ‘até ontem’ significava desde 1940, ano da
inauguração. O local, perto da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, não
resistiu à pandemia e baixou as portas, com pouca chance de reabrir. A
Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel) diz que 40% dos
negócios podem ter destino igual.
Portanto, ao sair de casa, ansioso por voltar ao
restaurante em que você era conhecido pelo nome e tratado como amigo, por
favor, certifique-se que ele continua existindo. Acreditem, avistar uma faixa
de “fazemos delivery” e “take away” já é bastante reconfortante.
Outro fator são promoções que gritam nas vitrines de lojas sobreviventes:
“70% de desconto”, “bota-fora”, entre outras mensagens.
Em obras
Mas você também pode ser otimista e, no
reencontro, reparar que a cidade está em obras. Calçadas sendo refeitas, lojas
reformadas e até novos bares e restaurantes prontos para abrir, como o The
Punch Bar, no Paraíso; Bar Elisa, no Arouche; e o Belle Époque, em Pinheiros.
Não é raro ver estabelecimentos ainda fechados, mas com funcionários fazendo
pequenos reparos, limpeza ou mudanças para distanciamento entre futuros
clientes.
O que parece nunca ter fechado de verdade são
night clubs e inferninhos. No Largo da Batata, os “porteiros
laçadores” (homens que ficam nas portas das boates convidando pedestres
para “conhecer o local”) estão a todo vapor. À reportagem, garantiram
usar álcool em gel e máscara no interior das casas.
Em geral, os habitantes mais reconhecíveis da
nova cidade são entregadores de delivery. Adolescentes de bike, com baús nas
costas, pedalando entre carros. Nas horas mortas, estão em praças, tentando
relaxar ou esperando o próximo chamado pular no celular. E se tiverem um
tempinho, almoçam uma coxinha de R$ 3 em botecos com mesinhas do lado de fora.
Mas segue o reconhecimento: o trânsito está
melhor, mas longe de apresentar vias livres. Radial Leste e Marginais já têm
movimento intenso ao longo do dia. Por outro lado, como as aulas não voltaram,
o engarrafamento do horário de entrada e saída não existe mais. Apesar da boa
notícia, é chocante ver escolas silenciosas ao meio-dia – o idílico barulho de
pátio no recreio cessou totalmente. O mesmo em locais com cinemas de rua, como
a Augusta. Salas fechadas esvaziaram o vai e vem da calçada. Desde o início da
pandemia, procura-se um pipoqueiro nunca mais visto por lá.
Quer fila? A partir das 16h, quando os shoppings
abrem, você as encontra com facilidade. Veja o Shopping Light, no centro. Cerca
de 30 minutos antes de reabrir, a fila para entrar começa na Rua Xavier de
Toledo, segue pelo Viaduto do Chá e quase chega à Prefeitura. Por lá, o
primeiro cidadão na fila: Jorge da Silva, 61 anos. “Um parente ficou aqui
desde 14h para guardar lugar. ‘Tô’ precisando pegar uns documentos aí.” O
shopping tem posto de atendimento da Polícia Federal. Já no Iguatemi, zona oeste,
a fila de taxistas ansiosos. “A pandemia fez piorar o que já estava ruim.
O único jeito de pegar cliente é aguardar na entrada dos shoppings e contar com
a sorte”, disse Osmar Cardoso, de 51 anos.
O centro merece atenção especial. É onde a crise
desenha de forma mais evidente e escandalosa o drama que nos espreita. Basta
uma visita para notar o quanto a pandemia contribuiu para a precarização. Na
Sé, pessoas em situação de rua se abrigam em pequenas barracas, dormem no chão
e na escadaria da Catedral (fechada). Impossível cruzar a praça sem ser
abordado por pessoas pedindo dinheiro, comida ou qualquer ajuda.
A grande maioria não usa máscara ou respeita
distanciamento social. É gente com fome e desassistida. O mesmo no Largo São
Francisco. Há ações humanitárias, mas a situação parece fora do controle.
“Tem gente aqui sem comer mesmo, não tem pra quem pedir. Os lugares que
davam comida pra gente estão fechados. A gente ‘tá’ muito ferrado”, disse
um rapaz de 20 anos, que pediu para ser identificado só como Carlos.
É a cidade que, por enquanto, nos espera do lado
de fora de nossas casas. Como uma velha conhecida que passou por meses difíceis
e está um pouco mudada. Ainda é preciso ouvir a ciência sobre o momento certo
para reocupá-la definitivamente e, talvez, transformá-la. Mas, calma, essa hora
vai chegar. Seja lá como for, faça uma promessa para você mesmo: não use sua
máscara no queixo.
Clubes
Treinamentos poderão ser reiniciados nos clubes
esportivos e sociais de São Paulo a partir do dia 1º. O Clube Pinheiros anunciou
que vai reabrir no dia 7. Quadras e piscinas continuam fechadas.
* BASEADA
NO FAMOSO VERSO DE OSWALD DE ANDRADE “O BRASIL É UMA REPÚBLICA FEDERATIVA
CHEIA DE ÁRVORES E GENTE DIZENDO ADEUS”.
Na nova SP, placas de ‘aluga-se’ e as máscaras no queixo
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