Da Redação
Por meio da Central de Transplantes do Estado, distribuição de órgãos no território paulista se tornou mais justa e transparente
Perda de peso, barriga inchada, fraqueza e desmaios eram sintomas bastante comuns para Maria Raimunda da Silva. “Eu estava praticamente morta”, afirma ao se lembrar da quantidade de vezes que foi parar no hospital sem consciência. O diagnóstico de cirrose hepática veio rápido, assim como o encaminhamento para unidade especializada.
Visitas diárias ao médico viraram rotina. Maria, mãe de dois filhos, passou a realizar o tratamento no Hospital de Transplantes do Estado de São Paulo, na capital paulista, onde recebeu a notícia de que seu fígado havia parado de funcionar. Um único procedimento seria capaz de salvar sua vida: um transplante.
“Eles viram que não tinha mais jeito”, comenta. Angustiada e com medo, entrou para fila de transplante do Estado e somente um doador compatível poderia pôr fim nesse sofrimento. Foi então que um fígado apareceu e, em 21 de maio de 2017, realizou o transplante. A recuperação não foi das melhores, mas em 15 dias Maria Raimunda tinha ganhado uma nova vida.
“O perfil desse paciente é que ele não tem só o fígado doente. Muitas vezes, ele se encontra desnutrido, (pois outros órgãos também foram acometidos). Cada transplante é uma surpresa, cada caso varia na recuperação”, relata a médica hepatologista do Hospital de Transplantes, Mirella Medeiros Monteiro.
Hoje, aos 58 anos, Maria Raimunda não tem palavras para agradecer os familiares da pessoa que doou e ressalta a necessidade de todos se tornarem potenciais doadores. “Foi uma sensação de alívio. Eu me sinto com 20 anos de novo, estou muito mais enérgica do que antes. Por isso, eu aconselho meus filhos e toda minha família a doarem. Se foi importante para mim, é importante para os outros também”, revela.
Central reguladora
Atualmente, milhares de brasileiros possuem trajetórias parecidas como esta. Muitas delas, contudo, ainda se perdem no caminho e deixam para trás histórias, famílias e uma possível chance de sobrevida. Para reverter esse cenário, portanto, é imprescindível criar cada vez mais uma sociedade consciente da importância de se tornar um doador de órgãos.
No Estado de São Paulo, existe um órgão responsável por administrar e regular todos os procedimentos de doação e transplantes. Desde 1997, a Central de Transplantes, vinculada à Secretaria de Estado da Saúde, torna a distribuição de órgãos captados mais justa e transparente. Assim, são estabelecidos critérios de tempo de espera dos pacientes inscritos, compatibilidade e gravidade.
De lá para cá, a Central registrou um saldo de 101,3 mil doadores paulista e mais de 117 mil transplantes realizados. Houve um crescimento de 916% no número de doadores-cadáveres (aqueles que tiveram morte cerebral), chegando a marca histórica de 844 só em 2017.
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Essas conquistas são graças a um trabalho integrado entre diversas equipes espalhadas pelo Estado que realizam a captação de órgãos, transplantes e acompanhamento constante do paciente. Por conta desse volume, a Central possui com uma estrutura bastante robusta.
A partir de convênios com instituições públicas e privadas, a entidade conta com transportes aéreo e terrestre responsáveis por distribuir regionalmente os órgãos pelo Estado (com exceção de coração e pulmão). No total, são 365 equipes transplantadoras e 264 hospitais transplantadores.
“Precisamos de um mecanismo rápido que notifique doadores e prepare o paciente para o transplante”, explica Marizete Medeiros, coordenadora da Central de Transplantes, que funciona 24h por dia.
Passo a passo
As unidades hospitalares que possuem UTI e pronto-socorro devem ter uma comissão instrahospitalar de transplante, liderado por um médico, que identificam pacientes com trauma craniano ou AVC. Com isso, ele precisa notificar a Central para certificar a possibilidade da existência de um doador. Após a confirmação de morte encefálica, é necessário que a família autorize a doação.
Paralelo a isso, os pacientes que estão à espera de um órgão são registrados em uma lista de espera da Central. Quando surge um doador, esse sistema cruza as informações e indica quem são os possíveis receptores. Critérios como tipo sanguíneo, gravidade do paciente e tempo de espera são essenciais para fazer a distribuição deste órgão.
“Ainda mandamos para um laboratório que pegam amostras das duas pessoas e fazem a prova definitiva. Após esses procedimentos, o transplante pode ser realizado”, comenta Marizete. É com base nessas estratégias que, hoje, São Paulo realiza metade dos transplantes do país e é referência internacional em diversas modalidades do procedimento.
São Paulo na ponta
O Estado de São Paulo não está na ponta dos transplantes nacionais apenas pelo seu número de habitantes. Atualmente, os paulistas recebem pacientes de todos os cantos do Brasil, que são registrados na lista de espera paulista, para realizar o procedimento.
É o que acontece com os transplantes de pulmão, que coloca o Estado na vanguarda comparado com vários países. O Instituto do Coração (Incor), vinculado ao Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, é um dos únicos capacitados para tal prática.
Trata-se de uma logística bastante complexa comparada com os demais órgãos, pois as chances de danos são maiores e exigem uma avaliação mais profunda. Por esse motivo, o médico Paulo Pêgo Fernandes, diretor da Divisão de Cirurgia Torácica da entidade, explica que a grande dificuldade está em manter uma equipe motivada para realizar o trabalho.
“É uma cirurgia mais longa. Na maioria das vezes, são quatro em uma, pois temos que tirar os dois pulmões e colocar os dois doados. Por isso, é necessária uma estrutura hospitalar grande, com acompanhamento multidisciplinar. Isso não é fácil de encontrar”, afirma.
No ano passado, a equipe de Fernandes realizou mais de 50 transplantes. “É um desafio que buscamos há décadas e que hoje nós podemos oferecer. Com esse serviço diferenciado, é a nossa obrigação atender a população”, completa.
Diga ‘Sim’ para doação
No Brasil, é a família quem autoriza as doações. Por isso, é importante esclarecer a todos os membros desde já a vontade de doar os órgãos. Este é, sem dúvida, o maior desafio não só da Central de Transplantes, como de todo o país.
Para muitas famílias, é difícil compreender a morte cerebral. No entanto, a falência do cérebro invalida qualquer chance de vida do paciente, por mais que o coração ainda esteja bombeando sangue para o corpo. “Existe uma lenda em cima de ‘desligar os aparelhos’. Se existe essa possibilidade, é porque não tem mais prognósticos”, reitera Mirella.