Disciplina, diálogo e paciência. Há quatro meses,
estamos vivendo uma vida completamente diferente. E muitas das mudanças com as
quais foi necessário lidar vão marcar não apenas esse período de isolamento
como poderão nos acompanhar quando for possível retomar uma vida um pouco mais
parecida com a do mundo pré-pandemia.
O home office, por exemplo, veio para ficar, na
opinião de Eduardo Ferraz, consultor em gestão de pessoas e autor de livros
como Negocie Qualquer Coisa Com Qualquer Pessoa: Estratégias Práticas Para
Obter Ótimos Acordos Em Suas Relações Pessoais e Profissionais (Planeta).
“O que se espera do profissional daqui em diante é a flexibilidade, o jogo
de cintura, a capacidade de se adaptar e de trabalhar por conta própria. E de
se relacionar com a família trabalhando em casa”, diz.
Este é o momento, também, de arrumar a casa.
Cuidar de si e do outro, buscar equilíbrio. “Embora estejamos em casa, temos
muito mais estressores acontecendo do que o habitual. São ameaças financeiras,
à saúde. Essas tensões podem ser canalizadas para ajudar a família a construir
uma resiliência”, afirma a psicóloga Daisy Emerich-Geraldo. “A ideia
é cooperar, e, para isso, temos de falar do que precisamos e sobre o que
esperamos. E precisamos ser tolerantes com o tempo do outro”, explica.
Tolerância. “Com o isolamento social, o que
poderia não irritar tanto agora pode levar à perda da paciência com mais
facilidade”, lembra a Monja Coen, também autora de livros como A Sabedoria
da Transformação (Academia). “É aqui que entra a oportunidade de treinar,
de conhecer a si mesmo. E o momento de praticar a paciência e criar
harmonia”, diz.
A comunicação é o mais importante
Havia um monge de pavio curto, que era muito
criticado por isso. Desesperado, procurou um meio hábil. Contratou um jovem
para que lhe desse uma paulada sempre que perdesse a paciência. Entrou uma
pessoa e falou coisas que o fizeram perder a paciência e esbravejar. O jovem
deu uma paulada no monge, que disse: “Você bateu depois de eu haver
gritado. É preciso pegar a raiva na hora que acontece, antes que eu faça uma
cena”.
Veio outro visitante e o jovem, percebendo que o
monge poderia ficar bravo, logo deu uma paulada. Mas foi muito cedo. Na
terceira vez, o jovem acertou. O monge se acalmou. Naquele momento ele
conseguiu se tornar dono de si e de suas respostas ao mundo. A partir desse
dia, ele aprendeu a controlar seus humores.
Esta história é importante para que possamos
perceber nossas emoções e escolher nossa resposta às provocações do mundo.
O caminho é o autoconhecimento
Observe suas mudanças de humor. Elas ocorrem
simultaneamente com alterações respiratórias. Podemos controlar a respiração e
quando a tornamos estável, profunda e sutil, as emoções desagradáveis passam.
Perceba o que o faz perder a paciência – pode ser um gesto, um olhar, um
suspiro, uma palavra. Não deixe que qualquer pessoa controle você dessa forma.
Perceba o mau humor se aproximando e respire
suavemente. Apenas perceba o ar entrando, a caixa torácica se expandindo. Solte
o ar bem devagar. Repita duas ou três vezes. Não grite, não brigue, não
responda à provocação. Compreenda. Essa pessoa está precisando de atenção. Você
pode mudar e transformar um círculo vicioso apenas com sua resposta inesperada.
Nada de ficar triste, chorar, gritar, insultar. Respire.
Vá até a janela. Olhe para o céu, para a
imensidão. Lembre-se que nada é permanente. Lembre-se das boas qualidades dessa
pessoa ou das pessoas. Não exija que sejam como você gostaria que fossem. Olhe
para você. Sente-se alguns momentos, todos os dias, em silêncio. Medite.
Observe a si mesmo. Como fala, como age, como pensa. Deixe de julgar e condenar
as pessoas. Deixe de dar tanta atenção às faltas alheias. Observe a si mesmo.
Sorria por suas fraquezas. Sorria até mesmo para sua falta de paciência Perceba
quando falta e a chame de volta.
Use meios hábeis
Todos estamos estressados, cansados e esgotados.
Tantas notícias tristes, preocupantes. Muita pressão. Lembre-se de que este não
é o momento de discutir a relação, de cobrar atitudes, falas. É momento de
criar harmonia, de respeitar, de compreender e amar. Na casa em que o amor
incondicional vive, a paciência se manifesta livremente. O amor deve ser
cultivado.
Crie harmonia em você, em sua casa, entre as
pessoas com quem convive
Quando cuidamos dos outros, somos
simultaneamente cuidados. Assim, procure a ternura e o carinho e os traga de
volta à casa. Pratique a sabedoria profunda, o observar e ver claramente que
todos estamos cansados, inclusive você. Mas que há uma casa, um cômodo, há uma
ternura antiga, um novo dia. Aprecie sua vida onde está, como está e com quem
está. Há uma música antiga: “Love the one you are with”. Ame quem
está com você. Se conseguir, haverá harmonia e ternura. Cada dia será precioso
e sagrado, cada instante, irrepetível.Aprecie sua vida. Brigue menos. Ame mais.
Cultive a paciência
Respire conscientemente. Sorria. Somos frágeis e
também podemos ser macios e fortes. Fale mais baixo, esteja mais próximo.
Perceba a necessidade verdadeira – sua e das pessoas com quem convive. Você já
foi adolescente, lembra? Queira bem e acolha as pessoas com quem está
convivendo. Agradeça. E viva cada dia com plenitude. Não será melhor quando
acabar. Agora é o momento de ser excelente. Sua vida está aqui, neste momento.
Leia um bom livro, ouça uma boa música e cante uma canção de amor.
Tenha disciplina
Mesmo quem mora em casa ou apartamento pequeno
deve ter um lugar separado, um quartinho, um banheiro transformado em
escritório, para poder ficar concentrado e sem interrupção durante o trabalho.
Melhore os seus equipamentos
Quem presta serviço a distância precisa cuidar
de todos os detalhes: iluminação, enquadramento, velocidade de internet. É
inadmissível estar numa videoconferência com quatro ou cinco pessoas e uma
delas ficar caindo toda hora, por exemplo.
Aproveite este momento para se atualizar
Como estamos em casa o tempo todo e sobram o
sábado, o domingo e às vezes algumas horas do dia, devemos aproveitar para nos
atualizar. Estude. Há muitos bons cursos online. Faça leituras. Faça desse
limão uma limonada para você estar mais preparado quando voltar o trabalho
presencial.
Seja proativo
Não espere que o cliente ou o chefe façam uma
proposta diferente Proponha modelos e remunerações diferentes. Quando possível,
uma remuneração atrelada a resultados, a projetos ou desempenhos Isso pode
fazer uma enorme diferença neste momento em que as pessoas estão com medo ou
dificuldade de contratar.
Aprenda a se relacionar com a família
trabalhando em casa
Tenha o horário da diversão – para ver um filme
juntos, conversar, fazer as refeições – e depois volte ao estudo ou para o
batente, como aconteceria no escritório. Aproveite o horário em que a criança
está estudando.
Esse equilíbrio vai ser o novo normal daqui em
diante. Isso não é paradigma ou chavão. Esse novo normal veio para ficar. Esse
espaço voltado ao trabalho em casa e essa disciplina para separar as estações e
os horários vieram para ficar. Isso vai fazer parte da vida de muita gente
daqui para a frente.
Hora de (re)descobrir as relações
Casar, separar, conviver, compartilhar. Se a
pandemia fez crescer o número de divórcios no País, o isolamento forçado também
juntou casais que já pensavam em dividir o mesmo teto e só precisavam de um
“empurrão”. Filhos adultos voltaram a morar com os pais – e a
redescobrir os afetos familiares -, ex-casais se acertaram para transformar o
momento atual em algo menos traumático para as crianças e amigos que já moravam
juntos viram os laços se estreitarem.
A quarentena bagunçou a rotina, mudou o
cotidiano, aproximou, distanciou. Também fez mudar o foco da saudade e provocou
o fenômeno da “proximidade excessiva”.
Exigiu – e continua exigindo – doses extras de
paciência e equilíbrio, mas dá a oportunidade para cada um se conhecer melhor e
tempo para fortalecer as relações.
Abaixo, contamos histórias de quem está
driblando esses meses de incertezas e juntando aspectos positivos gerados no
caos para levar como ensinamento para o resto da vida.
Três amigos isolados em um sobrado ‘cool’ em
Pinheiros
Idade semelhante, turma em comum, rotina
agitada. A convivência pré-pandemia não poderia ser outra: pouca interação no
dia a dia, mas muitos eventos na casa que a atriz Isabel Wilker divide há um
ano e meio com os amigos Elisa Caetano e Antoine Kliot, em Pinheiros, na zona
oeste de São Paulo. “Logo no início já foi uma badalação. Começou o
festerê aqui, até com rotina de pré-carnaval”, lembra Isabel. “Depois,
nós fomos entrando numa rotina cada um com seu espaço, muito livre.”
Tudo mudou com a necessidade de isolamento.
Isabel, que já exibia até o cabelo da personagem que interpretaria em uma
novela da Record, passou a ficar mais em casa com a impossibilidade de gravar.
Elisa e Kliot geralmente não estavam ali durante o dia, por causa de seus
trabalhos, e também tiveram de ficar em quarentena, no sobrado geminado vintage
e “cool”.
“A gente teve de ser organizar, cada um
precisou escolher um lugar para trabalhar sem precisar ficar no quarto, que
também é meio confuso”, conta a atriz, de 35 anos. “A minha fase da
novela ainda não estava sendo gravada, mas boa parte estava encaminhada até
aquele momento de março. Não sei como fica a previsão agora. A Elisa está
atendendo clientes como freela em marketing de moda e o Antoine, economista de
formação, está fazendo formação de coaching e abrindo uma startup.”
Esse contato próximo vem estreitando ainda mais
os laços e ajudando a superar as incertezas trazidas pela pandemia. “Vem
sendo algo bem peculiar porque não é só passar mais tempo juntos É passar tempo
juntos numa situação difícil com muita frustração, muita angústia, com
insegurança e, às vezes, mau humor”, afirma Isabel. A atriz diz que o trio
conseguiu achar uma boa dinâmica, aprendendo a prestar atenção nas sutilezas e
na energia uns dos outros. “A companhia foi importante para ninguém ficar
nessa fossa de não poder ver as pessoas, de ter a saudade da família e dos
outros amigos todos.”
Troca de ideias. Eles passaram a dividir também
seus projetos profissionais e a trocar ideia sobre os trabalhos. “Fiz
trabalho para uma marca e chamei a Elisa para opinar. Volta e meia, ela me
pergunta sobre um texto. Compartilhamos tudo, não só o espaço físico.”
Isabel diz que vem acompanhando todo o esforço
de seus colegas da classe artística para se reinventar durante a pandemia, como
lives e leituras de texto, por exemplo. A área cultural foi uma das primeiras a
sentir o impacto da pandemia e continua entre as mais atingidas. O caminho
escolhido pela atriz neste momento, no entanto, foi outro. Se dedicar a um
outro tipo de produção, que antes fazia apenas quando tinha tempo disponível: a
colagem.
“Por conta da quarentena, eu acabei focando
nisso. E foi muito bom. Antes, eu estava nervosa, sentindo ansiedade,
frustração, preocupação com as pessoas e com a família. Muita coisa legal
acabou saindo agora.”
Se ela vai ter alguma saudade do tempo de
quarentena? “Estou achando o máximo esse convívio. Sempre morei sozinha,
sempre tive medo de dividir espaço com alguém que não fosse marido ou um
parceiro”, afirma. “Mas eu acho que nesse momento foi muito
importante estar assim, até para aprender a ser mais flexível, aprender a
dividir tudo: o tempo, a paciência, o espaço. Nós demos muita sorte.”
Uma chance para o reencontro
Assim que começou a quarentena, Thayame Porto
deixou Osasco e foi passar uns dias com a tia, em São Paulo. Logo recebeu a
notícia de que a mãe, em Ribeirão Preto, estava com dengue e muito debilitada.
Não teve dúvida: fez as malas e, aos 33 anos, voltou para casa 13 anos depois
de ter deixado a cidade.
Contadora de histórias, ela teve seus contratos
suspensos no começo da pandemia. As lives que tinha começado a fazer em São
Paulo continuaram no interior – e, desta vez, com os pitacos da mãe, Norma, de
60 anos.
“Sinto pelo momento, mas é bom ter a
oportunidade de voltar, de fazer esse processo de olhar para dentro. Nesses
anos todos, nos afastamos emocionalmente e estou feliz por reencontrar minha
mãe, descobrir coisas sobre ela. Estou fazendo as pazes com o meu histórico
familiar”, conta Thayame.
A sensação é mais ou menos a mesma de Stefano
Florissi, professor de Economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
de 51 anos, que saiu da casa dos pais no Recife para mestrado e doutorado nos
Estados Unidos há 29 anos e só voltou para férias. Quando percebeu que haveria
uma quarentena, ele, solteiro, pegou um avião e está, há exatos 4 meses,
convivendo com Olindo, de 89 anos, e Edda, de 88.
“É uma bênção ter a chance de ter uma
relação adulta e dizer coisas como ‘eu te amo’, que não dizíamos porque somos
uma família tímida. Tem sido uma relação de companheiros, de pessoas que,
juntas, conseguem rir das coisas do passado e agradecer o que se tem. Isso é o
mais importante que quero levar da experiência da pandemia.”
República com 20 mulheres
Dividir o quarto com uma irmã já não é simples.
Mesmo morar com a família, depois de certa idade, pode ser complicado. Imagine,
então, compartilhar quarto, cozinha e banheiro em uma república só para
mulheres, com faixa etária entre quase 20 e 30 e poucos anos, em meio a uma
pandemia? Quem já está apostando que a tarefa é das mais complexas precisa
saber que a experiência tem sido de muito aprendizado e também de companheirismo
para as 20 moradoras da unidade Vila Mariana II da República Feminina São
Paulo.
Antes, elas pouco se encontravam, no entra e sai
das rotinas para trabalho e estudo. Quando sobrava um tempo nessa correria,
marcavam para ir ao parque, ver uma exposição, assistir a um filme. Agora, a
convivência está bem próxima. Momentos de risada na cozinha e de se sentar à
mesa para decidir qual será a próxima festa se tornaram habituais. Aniversários
viraram motivo para comemorações surpresa. Elas também fizeram um arraial de
São João e festas do pijama. A presença masculina é proibida ali
“As meninas falam que a gente grita na
cozinha. É nosso grito de liberdade”, brinca Mayara Patrícia Soares de
Medeiros, de 24 anos. “Estamos desde de abril em casa. Passamos a conviver
muito e a nos conhecer mais do que se estivéssemos em família.”
Quando a quarentena começou, 10 das 30 meninas
que alugam vagas na república foram para casa. “Muitas foram embora para
suas cidades, pois só estavam aqui pelos estudos. Quem ficou está fazendo home
office e são poucas que trabalham fora. Então, ficamos 24 horas juntas
aqui”, conta Mayara.
Colega de quarto de Mayara, a gaúcha Cáthia
Regina Quisinski, de 31 anos, é uma das que voltaram a trabalhar
presencialmente. Hipnoterapeuta, ela passou os meses iniciais atendendo por
vídeo “Barulho na casa é normal, são muitas meninas. Precisava me fechar
no meu mundinho para fazer os atendimentos”, diz.
Casada, ela havia chegado a São Paulo em
fevereiro, só para estudar. Foi morar na república e ainda estava se
acostumando com a ausência do marido, que ficou no Sul, e com o
compartilhamento do espaço quando precisou ficar em quarentena. “No
começo, foi difícil. Não conhecia ninguém na cidade, vim sozinha”, conta a
gaúcha. “Estou aprendendo muito com elas, conhecendo culturas e modos
diferentes de ver o mundo. Claro, às vezes, a gente precisa sentar e conversar
para se adaptar. Mas é produtivo. Para mim, está sendo algo novo.”
Cáthia diz que durante esse período chegou a
ficar receosa. “Mas houve uma aproximação maior entre nós. E algumas
coisas melhoraram o nosso convívio”, conta.
Compartilhar a guarda sem drama
A quarentena com crianças não é nada fácil.
Imagine para pais separados. Mas com criatividade, compreensão e uma dose de
boa vontade, ex-casais estão deixando as divergências de lado.
A psicóloga Cristina Marques e o ex-marido,
separados desde 2014 e sem nenhuma convivência desde então, se veem agora todos
os dias. Para ela poder trabalhar, ele vai para a casa dela, no Rio, onde se
divide entre o trabalho e os cuidados com os filhos, de 11 e 8 anos.
“Agora há troca, conversa. Acho que vamos colher frutos desse momento no
futuro”, diz Cristina.
O escritor carioca Marcelo Moutinho também está
aproveitando o tempo com Lia, de 5 anos. Do novo contato já até nasceram dois
livros infantis durante a quarentena.
Com os pais separados há 3 anos, Dionísio, de 9,
sempre trafegou bem de uma casa para a outra. Mora com a mãe, a editora Raquel
Menezes, no Rio, mas, dia sim dia não, via o pai, o escritor e professor Luis
Maffei. Desde que a quarentena começou, Dio tem dado as regras. Escolhe quando
vai e quando volta. “Estamos dando essa liberdade para que a quarentena
seja menos ruim”, diz Raquel. / M.F.R.
Um empurrão da pandemia
Quem só presenciou o reencontro por acaso de
Gerson Brandão, de 35 anos, e de Paula Jalu, de 38, na saída de um bloco de
carnaval cinco meses atrás, e 15 anos depois de terem se conhecido, não faz
ideia de tudo o que aconteceu de lá para cá. Era início de março e o isolamento
começaria em poucos dias.
Como o irmão de Paula ainda se recuperava de uma
cirurgia, ela ficou com receio de voltar para a casa dele, onde estava
hospedada. Uma amiga então pediu para ela cuidar de sua casa e dos gatos, e
para lá foi o novo casal. Depois, surgiu a ideia de dividir uma casa com
amigos, mas não deu certo. Sobraram os dois “A experiência é o que mais
tem contribuído para esse projeto a que nos propusemos.
Temos maturidade para acessar o que sentimos e
expor ao outro”, diz Gerson.
Morar junto começava a surgir como um plano para
a jornalista Luana Monteiro, de 29 anos, e o motion designer Felipe Dias, de
32, antes da pandemia. Então as coisas se aceleraram. Em abril, ela foi de mala
e cuia para o estúdio dele e depois para um lugar maior. “Temos certeza de
que queremos enfrentar isso junto”, diz Luana.
‘Somos um animal que se junta, mas quer
espaço’
Saudade é a lembrança boa, diz o filósofo e
professor Mario Sergio Cortella. Mas como sentir saudade em situações como a
atual, em que casais estão juntos 24 horas, quando pais e filhos nunca
conviveram tanto? “É preciso ser capaz de organizar momentos de
distanciamento voluntário, em que a gente combina de não ficar no mesmo
território”, explica Cortella. “Gostamos da privacidade, da
quietude.”
O filósofo conta que ele e a mulher, Claudia
Hamra, adotaram esses momentos de distanciamento durante a quarentena. “A
presença contínua não nos deixa saudosos de nada. Nesta hora, a privação
eletiva é uma boa combinação.”
Cortella diz que a proximidade excessiva, várias
vezes, gera colisões e atritos nas famílias. “Somos um animal que se
junta, mas nós gostamos de vez em quando de ter um pouco do nosso espaço.”
Nesta entrevista, ele também fala sobre a
oportunidade de aprendizado que a humanidade tem agora e afirma que a
felicidade é possível em períodos como o atual. Mas ressalta que nunca será um
estado contínuo, uma vez que a vida sempre impõe desafios. “Uma pessoa que
é feliz o tempo todo não é feliz, ela é tonta.”
Confira os principais trechos da entrevista:
Em um dos seus livros, o senhor já dizia que
uma falha na relação entre pais e filhos é o pouco tempo que passam juntos. E
agora, nesse momento em que estão 24 horas juntos, a relação está melhorando ou
só mudou?
Estar perto não significa estar junto. A noção
de junto é muito mais afetiva. Quando digo que “estou junto com esta
pessoa”, significa uma relação de proximidade. Quando estou no elevador
com outras pessoas, estou perto, mas não necessariamente junto. Nesse sentido,
muitas famílias estavam habituadas até a, não estando tão perto, estarem mais
juntas do que agora. Essa obrigatoriedade de estar grudado o tempo todo
evidentemente gerará colisões e atritos vez ou outra. Somos um animal que se
junta, mas gostamos de vez em quando de ter um pouco do nosso espaço, nosso
território.
Como manter as relações saudáveis neste
momento?
Em uma orquestra sinfônica há instrumentos
diversos, nem sempre coincidentes em relação ao tipo de som que emitem nem em
relação à altura do som. Mas para fazer um som junto, é preciso que haja a
preservação dos espaços de proximidade. É preciso então que a gente seja capaz
de concertar, com “c” mesmo, fazer um concerto da nossa convivência,
nas várias idades que a gente tem dentro de uma casa. E aí, a depender do tamanho
que ela tem, ser capaz de organizar momentos de distanciamento voluntário,
momentos em que a gente combina de não ficar no mesmo território. Estar com
outras pessoas não necessariamente é sinal de prazer contínuo, isso significa
que há vários momentos em que nós gostamos da privacidade, da quietude. Para
que a gente não se irrite com as interferências que a presença de outras
pessoas traz, é necessário concertar, e só a combinação permitirá. Nesse quase
130 dias com Claudia de modo contínuo, 24 horas, vez ou outra nós combinamos e
passamos uma parte do dia não longe um do outro, mas quietos, para que a gente
possa, na presença da ausência, ter saudade, porque só a presença da ausência é
que oferece saudade. A presença contínua não nos deixa saudosos de nada. Nesta
hora, a privação eletiva é uma boa combinação.
A saudade é importante?
Temos maior percepção de que algo nos faz bem
quando desse algo somos privados. A saudade é a boa lembrança. Alguns usam a
expressão no sentido mais forte de recordação. A saudade é uma forma de
recordação, que te dá o desejo, te inclina na direção de querer estar em algum
lugar, com alguma pessoa, com alguma música, com algum tipo de alimento. A
saudade não é só de pessoas, ela é de situações, de circunstâncias, de coisas.
Mas acho que algumas pessoas exageram quando falam de algumas saudades. Não deu
tempo ainda de ter tanta saudade de tanta coisa. A saudade resulta de uma
privação temporária. Sempre digo, para quem me elogia em excesso: cuidado, a
melhor maneira de perder um ídolo é conviver com ele. Por isso que o amor
platônico, na definição clássica, é duradouro. Ele tem uma perenidade, porque
ele é incorpóreo e, portanto, não tendo a convivência, tem outra referência.
O senhor já disse que não acredita em
“conversão súbita” no pós-pandemia. O que podemos levar de bom deste
momento?
Se não formos tolas e tolos, nós vamos aprender
que algumas coisas que são deixadas num plano secundário nos fazem falta. Eu
utilizo bastante uma frase do Benjamin Disraeli (escritor e político britânico,
1804-1881) que diz que a vida é muito curta para ser pequena. Por isso, a
amizade, amorosidade, a solidariedade, a sexualidade, a religiosidade e a
fraternidade são essenciais para não apequenar a nossa vida. Mesmo se
aprendermos isso, não acho que sairemos desse movimento pandêmico nos abraçando
em larga escala, como se fez no fim da Segunda Guerra. Ali, as pessoas se
abraçaram e se juntaram. Mas meses depois já estavam se digladiando de novo.
Nós nos esquecemos de algumas lições com velocidade.
O senhor citou palavras como amizade,
amorosidade, solidariedade. Uma delas ficou de fora, a felicidade. Dá para ser
feliz nesse momento?
A felicidade não é um estado contínuo. Eu e o
(historiador) Leandro Karnal, colunista do Estadão, escrevemos com o (filósofo)
Luiz Felipe Pondé um livro que trata do tema, Felicidade, Modos de Usar. E
temos um outro chamado Viver, a que se Destina?. A felicidade não é algo que
aconteça o tempo todo nem de todos os modos. Ela não está ali de modo contínuo.
De maneira alguma você pode imaginar que neste momento que nós estamos vivendo
a felicidade não se apresente em algumas situações, mas também não podemos
imaginar que ela venha o tempo todo. Eu sempre digo que uma pessoa que é feliz
o tempo todo não é feliz, ela é tonta. Afinal de contas, a vida tem
dificuldade, tem turbulência, tem agrura, tem agonia. Não dá para ser feliz o
tempo todo, mas também não dá para ser infeliz o tempo todo. Ainda quando
pandemia é algo ameaçador, há situações em que a gente percebe que vale
continuar, que vale não desistir. Gosto da ideia de que a gente, sim, vez ou
outra, abraça a felicidade quando ela vem.
O senhor vem provavelmente respondendo sobre
esse tema desde o início da pandemia, mas como não se desesperar neste momento?
Essa é a pergunta que eu mais tenho ouvido. A
forma é nos lembrarmos de que o hoje é um esforço coletivo para enfrentar
aquilo que nos ameaça e, se nós tivermos decência, seremos solidários o
suficiente para que, quando terminada a pandemia, não tenhamos vergonha por não
termos feito o que precisávamos fazer. Os antigos, meus avós e meus pais,
diziam: “Não há bem que sempre dure nem mal que nunca se acabe”. Eu
já disse essa frase durante esse tempo dezenas de vezes. E não é por convenção,
mas porque contém sabedoria. É difícil, é duro, porque é algo que nos agonia,
mas não é uma impossibilidade. Se nos juntarmos, conseguimos não nos
desesperar. O desespero vem quando a gente tem a percepção do abandono, quando
a gente se sente no Grande Sertão sem Veredas. Nesse sentido, a possibilidade
do encontro, seja de ideias ou de sentimentos, a empatia, a compaixão e a
capacidade de uma palavra que aproxima amenizam um pouco aquele que é o modo
desalento.
O ser humano se adapta a tudo?
Uma das coisas mais fortes é a capacidade humana
não de adaptação stricto sensu, mas de integração. Adaptar-se significa ser
parte, enquanto integrar-se é fazer parte. A nossa postura na vida é muito mais
de fazermos parte, de fazermos um ambiente. Portanto, é muito mais autoral,
muito mais protagonista. Mas entendendo aquilo que você indica, isto é, se nós
temos maleabilidade, se nós temos flexibilidade para lidar com situações, sem
dúvidas. Eu, habituado há décadas a fazer aulas e palestras na quase totalidade
das vezes na frente das pessoas, agora preciso integrar na minha prática coisas
que eu não conhecia. Nós somos capazes de flexibilidade. Isso é uma vantagem
imensa para a nossa sobrevivência. Afinal de contas, é só imaginarmos o número
de vezes na vida que nós tivemos de alterar alguns dos caminhos que estávamos
fazendo. Ainda bem que, como nós não nascemos prontos, dá para a gente inventar
a trajetória numa parte do final.
Relações familiares em tempos de quarentena que nunca acaba
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