O remanejamento de recursos do programa Bolsa
Família para ampliar a verba publicitária do governo federal acendeu o alerta
entre especialistas para o risco de “manobra” para burlar regras
fiscais e usar exceções previstas na lei para os gastos da pandemia a favor de
um aumento em despesas que não são emergenciais e nada têm a ver com o combate
à doença.
Uma dessas exceções é o crédito extraordinário,
instrumento a que o governo pode recorrer para despesas imprevisíveis e
urgentes e que fica livre do alcance do teto de gastos, mecanismo que limita o
avanço das despesas à inflação.
A avaliação é de que, na prática, os créditos
extraordinários abertos para bancar gastos da crise provocada pelo novo
coronavírus estão servindo para custear despesas previsíveis e não urgentes,
como é o caso da verba para a Secretaria Especial de Comunicação Social da
Presidência (Secom) fazer propaganda do governo.
A “triangulação”, como vem sendo
chamada a estratégia, envolve a abertura de um crédito extraordinário no valor
total previsto para o auxílio emergencial de R$ 600 para trabalhadores
informais, iniciativa que tem entre seus beneficiários praticamente 95% dos
atendidos pelo Bolsa Família. Com a migração das famílias, o espaço reservado
ao Bolsa no Orçamento e no teto fica quase todo “livre” para ser
remanejado a outras ações que não poderiam, pelo que diz a Constituição, ser
contempladas por crédito extraordinário e para as quais não havia dinheiro
antes da crise.
O governo já abriu até agora três créditos
extraordinários para o auxílio emergencial, o primeiro de R$ 98,2 bilhões, o
segundo de R$ 25,7 bilhões e o terceiro de R$ 28,7 bilhões. Enquanto isso, o
gasto mensal do Bolsa Família caiu cerca de R$ 2,4 bilhões com a migração dos
beneficiários para o programa temporário. Uma parte do “espaço” que
ficou no Orçamento, R$ 83,9 milhões, foi direcionada à Secom.
Uso social. Para o economista Marcos Lisboa,
presidente do Insper, o governo deveria ter descontado dos créditos
extraordinários o valor que sobraria na dotação do Bolsa Família Ou seja, usar
a exceção legal apenas para os gastos adicionais com proteção social, o que
resultaria em créditos de valor menor
“Para preservar o teto, não tinha dinheiro
para vários gastos. Você fez o ajuste, vários gastos eram essenciais, você
preservou o Bolsa Família. Veio o crédito extraordinário para substituir o
Bolsa Família e você usou aquela verba, que agora poderia ter outros usos
sociais ou evitar o aumento da dívida, para gastos que nada têm a ver com a
emergência. É preocupante”, afirma Lisboa. Ele vê risco de outros gastos
não essenciais acabarem passando sob a mesma estratégia.
Após a decretação de calamidade pública pela
covid-19, o Congresso aprovou um regime fiscal extraordinário conhecido como
“Orçamento de Guerra”, que na prática livra os gastos de combate à
pandemia das amarras fiscais impostas pela legislação brasileira.
Para um ex-integrante do Banco Central ouvido
sob a condição de anonimato, o remanejamento de recursos do Bolsa Família para
a Secom “parece transferir despesas não emergenciais para o orçamento de
guerra”.
O uso indevido de créditos extraordinários pela
ex-presidente Dilma Rousseff (PT) foi alvo de questionamentos no Tribunal de
Contas da União (TCU).
Na semana passada, a equipe econômica convocou uma
entrevista coletiva para defender a legalidade da ação. O principal argumento
foi o de que os beneficiários do Bolsa Família não deixaram de receber os
pagamentos. O programa, porém, acumula uma fila de 433 mil elegíveis e que
ainda não tiveram a concessão do benefício.
Controversa. A discussão sobre a triangulação é
controversa. O diretor da Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira
(Conof) da Câmara, Ricardo Volpe, disse não ver drible ao teto ou às regras
fiscais, embora tenha classificado o remanejamento de “barbeiragem
orçamentária” por tirar dinheiro da área social para dar a uma área que
não tem relação com o combate à pandemia
Volpe também reconhece que a flexibilização de
regras fiscais para viabilizar os gastos da pandemia pode ter efeitos
colaterais. “Quando se tira a necessidade de cumprir regras pode, nessa
carona, entrar despesas que não tinham caráter tão emergencial”, afirma.
Na área econômica, a avaliação é de que a sobra
na dotação do Bolsa Família “cumpre tecnicamente” a possibilidade de
remanejar recursos para outra área. Mesmo assim, já se fala internamente em não
atender a outras demandas dos órgãos ou até reduzir o valor de um novo crédito
extraordinário numa efetiva prorrogação do auxílio emergencial para absorver a “folga”
deixada pelo Bolsa.
Procurado, o Ministério da Economia não se
manifestou.
Remanejamento do Bolsa Família pode caracterizar drible nas regras fiscais
- PUBLICIDADE -