O mecânico aposentado entra na padaria, pergunta se
já é possível usar o balcão e pede um pão com manteiga na chapa. O homem tira a
máscara com cuidado, mas não sabe o que fazer com ela. Ameaça deixar em cima do
balcão. Pensa mais um pouco e, na dúvida, apenas puxa sua proteção para debaixo
do queixo. “Nessa quarentena, o que eu mais senti falta foi poder fazer
isso todas as manhãs”, disse Jorge dos Santos, de 68 anos, antes do
pãozinho aterrissar na frente dele.
Por trás da refeição matinal de Santos, estão o
desejo de normalidade e a vontade de retomar uma rotina pré-covid. Ele não
burlou nenhum protocolo, não fez nada de errado, mas esse tipo impulso
(necessidade, em alguns casos) confunde a paisagem e provoca a sensação que a
pandemia chegou ao fim. Quem sai para uma volta na cidade de São Paulo pode
cair na armadilha de que tudo já passou e que o coronavírus não é mais uma
ameaça à saúde pública.
Embaixo do viaduto do Glicério, na zona sul da
cidade, amigos ocupam uma quadra poliesportiva e disputam uma partida de
futebol – como se estivessem protegidos pelo protocolo da Fifa. Na quadra,
ninguém de máscara, muitos estão sem camisa e na hora do gol tem vibração e
abraços. Sem entrevistas depois da pelada, um dos atletas apenas pergunta em
tom de reclamação: “A gente não tem direito de se divertir?”. Os
jogos de futebol são considerados de alto risco de contágio pelos órgãos de
saúde.
No parque do Ibirapuera, a necessidade de
diversão, lazer ou de uma “respirada” fez ressurgir pequenos
piqueniques entre familiares e amigos. Na grama, com evidente preocupação de
manter certo distanciamento dos demais frequentadores, a família Fontes tenta
relaxar. “Em um lugar aberto, nos sentimos mais seguros. Acho que poder
ficar em um parque nos ajuda a controlar a ansiedade”, disse Aline Fontes,
33 anos, que estava com o marido (Danilo) e os gêmeos (Evelin e Luan).
Menos preocupados com distanciamento, estão os
skatistas que frequentam a Praça Roosevelt, outro marco da cidade. O desejo de
diversão é o mesmo, mas os cuidados são menores. Uma cena típica do lugar:
garotos dividindo garrafinhas de água depois das suas manobras radicais. Todos
tomando no bico.
Quem sai de bike (as ciclofaixas retornaram
recentemente) também vai perceber o quanto é difícil os ciclistas conseguirem
manter certo distanciamento entre eles. Além disso, muitos abdicam das máscaras
durante as pedaladas. “Para mim é impossível pedalar de máscara”,
comenta o técnico em informática, Luiz Tavares Junior, 33 anos.
O movimento nos salões de beleza e barbearias
parece querer voltar a uma certa normalidade. A vontade de “ajeitar o
cabelo” ou “caprichar na barba” já fala mais alto do que o medo
de pegar covid-19. O Estadão passou por diversos salões, todos com clientes e,
aparentemente, cumprindo os protocolos de funcionamento.
“O ser humano é vaidoso. E não tem
problema. Se você se sente seguro, não está errado em cortar um cabelo, fazer
uma unha. Afinal, já foi liberado”, comenta uma advogada que, na cadeira
do cabeleireiro, pediu para não ser identificada.
No centro da cidade, o desastre social atropela
os cuidados com a saúde. O número de moradores em situação de rua parece
crescer E nesse universo de fome, desemprego e descaso não existe máscara,
álcool em gel ou distanciamento social nas ruas.
Nas ruas de comércio, os homens-sanduíche estão
de volta, o aposentado da plaquinha “compro ouro” também está lá –
assim como toda sorte e diversidade de ambulantes.
Artistas de rua e pastores também provocam
pequenas aglomerações Nas lotéricas do centro, filas para uma fezinha. Máscaras
no queixo e gente concentrada em escolher os seis números na Mega. A
necessidade de sobrevivência parece tentar achatar a curva da covid-19 na
marra.
Claro, o lado mais evidente dessa cidade em que
a pandemia parece ter acabado são o happy hour e a vida noturna. Com a
flexibilização, os clientes começam a voltar aos cafés e às mesas de bares.
“Poder tomar um café com um amigo, falar do trabalho, falar bobagem. Isso
é vida. Tomando todos os cuidados, é possível fazer isso”, comentou o
empresário Carlos Júlio Leonel, 48 anos.
A vontade de sociabilização é natural, mas, às
vezes, transborda Em pontos com muitos bares, como a Vila Madalena, o maior
problema é do lado de fora dos bares. Muitos jovens com garrafinhas de cerveja
long neck, rodinhas de amigos, abraços e beijos. Em tardes ou noites de
futebol, a situação é ainda menos controlada. A cada gol, o distanciamento
social e os cuidados desaparecem. É mais um 7 x 1.
Mas nem só lazer e “respiração” fazem
a cidade se fantasiar de normalidade. O trabalho também nos empurra de volta à
rotina. Ao pegar a avenida Radial Leste, principalmente depois das 17h, o
trânsito já é parecido com aquele encontrado antes do vírus. A mesma situação
pode ser flagrada nas principais vias de São Paulo. Nos pontos de ônibus ou nas
estações de Metrô, o conceito de home office parece distante, quase uma piada.
A regra é que todos usem máscaras no transporte
público – e ela parece estar sendo seguida pela maioria da população. Mas não é
difícil se deparar com a situação de pessoas que tiram a máscara tão logo
descem do ônibus ou deixam uma estação de metrô. A desculpa é a famosa
“respiradinha” ou a vontade de “um cigarrinho” depois do
expediente.
Uma SP como se não houvesse coronavírus
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